Histórias de Glauber

Todos que chegaram perto de Glauber Rocha têm uma história fantástica para contar. Ele é um dos mais fascinantes personagens da cultura brasileira. Glauber, esse vulcão, de João Carlos Martins, é a melhor, mais rigorosa e completa biografia sobre ele. Mas, no afã de evitar a aura de loucura e revelar a verdadeira contribuição intelectual de Glauber, Martins realizou uma obra um tanto árida.

Li, recentemente, A primavera do dragão, de Neson Motta, que envereda pelo caminho oposto ao de Martins: o anedotário em torno de Glauber. Há muitas imprecisões. Motta escreve, por exemplo, que o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil era editado pelo poeta e crítico Mário Faustino. Errado. Quem concebeu e dirigiu o SDJB foi Reynaldo Jardim.

Seria talvez necessária uma biografia que sintetizasse a contribuição intelectual de Glauber e a sua grandeza humana. Apesar disso, Motta conta boas histórias, reveladoras do caráter, das obsessões e da alma do personagem. Evocarei duas delas.

Certa noite, Glauber e a trupe de amigos da adolescência baiana aprontaram a maior confusão em um bar e foram levados à delegacia para prestarem depoimento. O escrivão pediu que eles se identificassem. Glauber se autonomeou: "Carlos Drummond de Andrade". Outro amigo se apresentou: "Pablo Neruda". E um terceiro pontificou: "Mario de Andrade". Ao ler o depoimento, o delegado de plantão, que tinha algumas fumaças literárias, caiu na gargalhada, deu uma tremenda bronca e mandou todo mundo embora.

E a segunda. Nos tempos de adolescência, Glauber fazia marcação cerrada sobre os candidatos a paquerar a sua belíssima irmão Anecy. Ela estava namorando Caetano Veloso em casa, quando ouviram o barulho de alguém chegando. Os dois ficaram aflitos. Caetano indagou: "É seu pai?" E Anecy respondeu assustada: "Não, pior ainda, é Glauber". No desespero, Anecy inventou, desajeitada, algo para se safar: "É um amigo meu, gay".

Nos tempos em que passou por Brasília, no fim da década de 1970, Glauber concedeu entrevista a três amigos: Celso Araújo, Éclison Tito e Milton Guran. Logo na primeira pergunta, feita por Celso, sobre o que era o novo filme, A Idade da Terra, Glauber destemperou e fez um discurso de meia hora sobre a decadência do jornalismo cultural, mas respondeu perfeitamente à indagação.

O baiano Tito é uma das pessoas mais inteligentes que conheci. Tomou as dores e Glauber partiu para o ataque: "Olha, vou te psicanalizar: você é negro, subdesenvolvido e vou te dar uma porrada". Tito replicou: "A sua análise é pre-lacaniana". Glauber trepicou: "Eu sou o próprio fluxo do inconsciente".

Durante a entrevista, Glauber puxou o fio que ligava o gravador à tomada, aprontou e irritou. Celso, Tito e Guran descreveram tudo, mas respeitavam muito a Glauber, fizeram uma matéria correta e elogiosa, sob o titulo "Glauber em êxtase". Satisfeitíssimo, Glauber comentou com o amigo brasiliense Fernando Lemos: "Não entendi nada, esculhambei com os caras e eles botaram esse título".

O resultado é que ficou amicíssimo do Tito. Logo que chega a Brasília ligava e ordenava: "Tito, você precisa fazer cinema. É a síntese das artes e do jornalismo". Quer dizer, sua provocação era um teste para saber até que ponto poderia confiar em determinadas pessoas. Havia razão na aparente loucura de Glauber.