autópsia da sucata

Carros viram doadores de peças

As diferentes partes dos automóveis inservíveis podem voltar para as estradas dentro de novos corpos de metal. A prática é regulamentada no Brasil, mas é manchada pela atuação de criminosos, que vendem materiais roubados

O automóvel em fim de vida serve como doador de peças para veículos que ainda apresentam condições de continuar nas estradas. Durante a desmontagem, desde o motor até os bancos têm a oportunidade de ganhar lugar em um novo corpo de metal. E se por um lado o Brasil ainda patina na reciclagem da sucata, por outro, o comércio de peças usadas tem um lugar consolidado dentro da indústria automotiva.

A sala de cirurgia onde esses transplantes têm início é, na grande maioria das vezes, o pátio dos ferros-velhos espalhados pelo país. O reaproveitamento das peças também é considerado um modo de reciclagem, e é de extrema importância do ponto de vista econômico, já que reduz gastos com a produção de equipamentos novos; e também do ambiental, por diminuir a quantidade de resíduos automotivos que vão parar em aterros sanitários.

No entanto, essa prática tão comum no Brasil é envolta por regras rígidas para tentar coibir uma ação criminosa que ocorre em todos os cantos do país: o roubo de carros. Na terceira reportagem da série Autópsia da sucata: para onde vão os carros após a morte? o Correio mostra como funciona o mundo dos transplantes de peças usadas.

Mercado vantajoso

As partes mais visadas pelas lojas de peças seminovas são os materiais mecânicos e de performance, como motores e equipamentos de injeção e alimentação. "São essas partes mais específicas que costumam ser mais reaproveitadas. Às vezes, você pode ter um carro inabilitado para estar no trânsito, mas que tem dentro dele um cabeçote ou um motor de partida que estão nas suas integridades e podem ser colocados de volta ao mercado", explica o doutor em química Harrison Lourenço Corrêa, professor de engenharia mecânica da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

O reúso de peças é regulamentado pela Lei nº 12.977, de 2014, e pela resolução nº 611 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), que estipulam quais peças podem ou não serem reutilizadas. Os itens de segurança, como airbags e cintos, por exemplo, não podem ser reaproveitados por não ser possível garantir a funcionalidade deles.

O professor Ademyr de Oliveira, do curso de engenharia mecânica da Universidade Federal de Goiás (UFG), explica que, além das questões legais, as peças precisam passar por uma avaliação profissional que vai dizer se elas têm ou não condições de voltar ao mercado. "Nem todas podem ser usadas de novo. Algumas já passaram da vida útil, outras podem trazer trincas e rachaduras que diminuem a segurança", diz.

"É preciso destacar que as peças são projetadas com uma vida útil estipulada e, passado este período, a segurança diminui. Por isso é necessário realizar uma inspeção. No entanto, esse não é um procedimento simples, e muitas vezes não é feito em ferros-velhos espalhados pelo país", completa Ademyr.

O reúso de peças é ainda mais essencial para condutores de carros antigos — seja um veículo de colecionador ou não —, uma vez que a maioria dos fabricantes deixa de produzir peças sobressalentes quando os modelos ficam ultrapassados. A partir daí, sempre que o veículo precisa de alguma troca, os condutores precisam recorrer ao mercado de peças usadas.

É o caso do mecânico Murilo Santos, 35 anos, dono de um Volkswagen Gol, ano 2000. "Como meu carro é antigo, geralmente não encontro nas lojas peças originais novas, então a melhor alternativa é o ferro-velho. Não é nem pelo preço, porque muitas vezes peças usadas não são mais em conta por estarem sendo vendidas em ferro-velho, muito pelo contrário. Quanto mais antigo o carro, mais caras são as peças usadas", explica.

Os amantes de carros antigos são os principais clientes de ferros-velhos, mas não são o único público. Donos de veículos mais recentes, com até cinco anos de uso, também estão sujeitos a recorrerem às peças usadas. Mesmo antes da pandemia, alguns equipamentos não eram fáceis de achar e, depois da covid-19, com a escassez de matéria-prima e as dificuldades que a indústria enfrentou, encontrar certas partes de um carro virou uma tarefa ainda mais trabalhosa.

"Eu bati meu carro e precisei comprar um farol novo. Não estava encontrando em lojas de autopeças, então recorri às peças usadas. Como era uma peça externa, tinha que ser exatamente para o modelo do meu carro, um Peugeot 308 Active. Se fosse de outros modelos, até da mesma marca, não encaixaria. Então, eu fui a um ferro-velho e encontrei a peça usada por mais ou menos R$ 400", relata o aposentado Antônio de Oliveira, 61 anos.

Seminovos

Com a falta de artefatos novos, formou-se também um comércio de peças paralelas, que chegam a ser vendidas em autopeças, mas não são fabricadas pelas montadoras de carros. O motorista Ary da Silva, 60 anos, explica que esses materiais não apresentam uma boa qualidade, e que é mais vantajoso apostar em peças seminovas.

Apaixonado por carros antigos, Ary relata que compra peças usadas desde 1996, quando teve o primeiro carro, e que já passou por situações que mostraram que elas são alternativas mais eficientes. "Certa vez, quando eu tinha um Kadett, precisei trocar o coxim do amortecedor. Comprei uma peça nova, mas paralela, e tive que trocar duas vezes logo após a compra", relata. "Na primeira vez, eu rodei cerca de 40km e o coxim estourou, fui e comprei outro do mesmo, não andei 500m e ele estourou de novo. Para resolver o problema, eu fui ao ferro-velho, comprei um coxim usado e coloquei no carro. Resolveu o problema, porque o que eu comprei era usado, mas original, então o carro aceitou numa boa", relembra.