Em entrevista ao Podcast do Correio, a doutora em direito e procuradora aposentada do Ministério Público Federal (MPF), Ela Wiecko Volkmer de Castilho, defendeu uma maior sensibilização do Judiciário ao lidar com casos que envolvem violência doméstica, além de uma atuação intersetorial, focada no acolhimento da mulher. Na conversa com as jornalistas Adriana Bernardes e Thays Martins, ela explicou o trabalho que realiza no Projeto de Extensão Maria da Penha: Atenção e Proteção a Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar em Ceilândia.
Qual é a atuação do Ministério Público no combate à violência contra a mulher?
Por conta do meu trabalho de extensão na Universidade de Brasília (UnB), tenho muito contato com o Ministério Público do Distrito Federal. Temos no âmbito do Nepem (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher) na UnB um fórum chamado "Lei Maria da Penha", que congrega juízes, juízas, promotoras, promotores e o pessoal do psicossocial para trocar ideias, entender esse funcionamento do sistema de Justiça, para entender de que forma que esse sistema pode enfrentar a violência contra as mulheres. É a partir dessa experiência que expresso como vejo isso. Tem também a questão teórica dos estudos.
E essa experiência mostra o quê? Como o sistema de Justiça pode atuar no combate e prevenção à violência contra a mulher?
Nesse sistema de Justiça, o Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e os serviços psicossociais, cada um tem o seu papel, mas todos têm a mesma missão, que é dar uma resposta e punir também os autores dos fatos. Com relação ao Ministério Público, é muito interessante a possibilidade que se tem de atuar na esfera criminal, mas também na esfera de prevenção e fiscalização das políticas públicas. O Ministério Público do Distrito Federal, há muitos anos, foi pioneiro na criação do núcleo de gênero e na fiscalização de políticas públicas. Eles têm um grupo de assessoramento que faz relatórios muito relevantes para o Executivo. O Ministério Público do DF tem expedido recomendações para o Governo do Distrito Federal (GDF). Focando no Ministério Público do DF, a atuação é mais nessa área de repressão e prevenção no controle das políticas — ver o que está faltando e o que pode ser melhorado.
A senhora mencionou que a Justiça não tem o tempo das mulheres. Como a Justiça pode tentar ajudar essas mulheres mesmo não sendo no tempo delas? Como enfrenta esse desafio?
Os registros (de violência) são muito controlados, mas o tempo também é algo que sempre foi criticado, a morosidade do Judiciário. Teve até CPI para isso. Tudo é organizado, tabelas, assuntos, classes. Isso tem um lado bom, a gente sabe quantas medidas protetivas são pedidas no âmbito da Maria da Penha. Mas, com relação ao modo como o serviço é realizado, tem muita diversidade em termos de Brasil. O maior número de inquérito se refere a todos os tipos penais de violência contra a mulher, doméstica, familiar ou fora. É um problema grave. As varas de Violência Doméstica e Familiar são sobrecarregadas. Mas esse é o tempo da Justiça, porém não pode ficar muito tempo com processos parados e sem resposta. Mas, o tempo das mulheres serem ouvidas é diferente. Tem a audiência em que a mulher tem de ser ouvida e às vezes ela não é encontrada. Se ela é encontrada, às vezes diz que não se lembra sobre o que foi dito no boletim de ocorrência. Acontece um descompasso. A mulher às vezes volta atrás, pede para retirar a denúncia. Em crime de ameaça, isso mata o processo. Em crimes em que há lesão leve, se a mulher não for fazer um exame de corpo de delito, isso também mata o processo. Na violência psicológica, que é um crime recentemente tipificado e precisa de laudo, isso pode acabar morrendo.
A senhora acha que falta uma capacitação para juízes, defensores e promotores para lidar melhor com as mulheres? Muitas se sentem intimidadas por juízes.
Eu, como subprocuradora geral, fui chamada para prestar um depoimento e senti isso mesmo estando superpreparada. A gente fica em uma situação de intimidação. A capacitação tem sido promovida no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). Tem uma coordenadoria também no Ministério Público. Eu prefiro a palavra sensibilização. Experiências de sensibilização em que você se coloca na situação da outra pessoa, acredito que promovem mais a mudança. A capacitação tem de ser contínua de todos os atores do sistema de Justiça.
O sistema de Justiça sofre influência do sistema patriarcal?
Sim. Entre homens e mulheres. Nós também fomos educadas dentro desse sistema. Antigamente, o Judiciário era composto somente de homens. É muito recente a entrada das mulheres.
O DF está batendo recordes de violência contra a mulher e feminicídios. Temos também os órfãos dos feminicídios, o luto da família dessas mulheres. Como fazemos uma intervenção mais efetiva no sistema Judiciário, para que as decisões não sejam marcadas por essa cultura patriarcal e machista?
É uma solução que tem de ser construída. O consórcio Lei Maria da Penha foi formado antes da lei, por volta do ano 2003. Começamos a construir um anteprojeto de lei contra violência doméstica e familiar. A ideia era ter centros de referências como uma porta de entrada nessa área psicossocial. A mulher podia ir nesses centros para contar com soluções e encaminhamentos para a Justiça ou para reflexão. Nós oferecemos esse anteprojeto para o Executivo, que levou para o Legislativo e acabou na Lei Maria da Penha. A porta de entrada deixou de ser esse ambiente psicossocial mais aberto de saúde mental e foi para a delegacia.
O caminho seria criar uma porta de entrada mais humanizada?
Sim, tem essa coisa do tempo. Às vezes, a pessoa ainda não está preparada para pedir um divórcio, por exemplo. Ela precisa amadurecer (a ideia).
Como funciona sua atuação no projeto de extensão Maria da Penha?
Começamos esse projeto em 2007 porque tinha uma lacuna. A Defensoria Pública atendia os agressores, mas não atendia as mulheres. A Lei Maria da Penha foi uma mudança de paradigma, pois deu muita força à vítima. Nós acompanhamos as vítimas na audiência. Elas não entendem algumas palavras e se sentem muito intimidadas naquele lugar. A gente explica o papel do juiz, do Ministério Público. Nosso papel hoje não é mais na Vara de Violência Doméstica e Familiar, é na Vara de Família ou na Vara Cível, porque hoje em dia existe uma distinção horrível que não gostaríamos que houvesse, que é precisar falar o problema duas vezes. Se a mulher quer o divórcio ou guarda compartilhada, vai para a Vara de Família. Quando chega lá, e ela fala que sofre violência doméstica, ela é encaminhada para outra vara. Além disso, às vezes, a mulher tem de entregar o filho para passar o fim de semana com o pai, mas ela tem uma medida protetiva. Isso é contraditório dentro da ideia de que a Justiça tem de dar uma resposta integral à mulher. Aos sábados, trabalhamos com uma roda onde conversamos com as mulheres para ajudá-las a encontrar um caminho de autonomia e empoderamento.
Como deve ser a questão da escuta qualificada? Como posso ajudar as mulheres a encontrarem caminhos para saírem dos ciclos de violência?
É sempre importante termos amigos para quem podemos contar as coisas, sem ter medo de ser julgada, é o que chamamos de rede. No contexto de violência doméstica, muitas vezes, a mulher é afastada da família e fica sem ter com quem falar. O ideal é sugerir que a mulher procure um serviço em que ela possa ter essa escuta. No nosso projeto, nós escutamos em dupla, unindo o direito e a psicologia. Isso tem sido riquíssimo para todos. Aprendi que não devemos julgar e não devemos aconselhar. A pessoa deve se questionar a respeito da própria fala.
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