VIOLÊNCIA

Recorde de feminicídios em 2023 acende alerta para novas políticas públicas

Especialistas ouvidos pelo Correio apontaram que o investimento em políticas públicas é fundamental no enfrentamento ao extermínio de mulheres no DF

O número de feminicídios registrados no DF de janeiro até junho ultrapassa os casos de todo o ano passado: 21 mulheres foram assassinadas como consequência de violência doméstica ou somente por serem mulheres. São mães, avós, filhas, irmãs, amigas que deixaram de viver e se tornaram números tristes em relatórios de monitoramento da violência no Distrito Federal.

As mortes acendem um alerta, uma vez que estão acima do total de casos registrados em todo o ano de 2022, quando 17 mulheres foram vítimas. Dados da Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP-DF) mostram que até 6 de julho, última atualização da pasta, houve 38 tentativas de feminicídio nas regiões da capital.

Além dos dados da SSP-DF, em 19 de julho, um homem de 43 anos foi preso em flagrante, após atirar contra a própria filha, de 21, na Estrutural.

De acordo com especialistas ouvidos pelo Correio, o cenário é o reflexo da falta de políticas públicas voltadas às mulheres ao longo das últimas décadas e de espaços para acolhimento, um dos fatores que agravam a situação das vítimas.

Sentimento de angústia, além de muita dor é o que marca a família da vendedora Izabel Aparecida Guimarães de Sousa, 36 anos, morta pelo marido com um tiro na testa na frente da filha de 10 anos. O crime ocorreu em Ceilândia em 4 de fevereiro. Segundo Luciana Kelly Guimarães, 44, irmã da vítima, ao longo dos últimos seis meses o sofrimento e a dor ganharam espaço na vida dos familiares, que enfrentam no dia a dia a tristeza da perda.

“São seis meses de angústia e sofrimento. Ele não tirou só a vida da minha irmã, acabou com todos nós, inclusive com a filha deles, uma criança autista que presenciou a morte da própria mãe. Seguimos aguardando justiça, espero que a morte dela não fique impune”, ressalta, Luciana.

Para a promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Gênero do MPDFT, Liz Elainne Mendes, o DF precisa avançar muito com serviços compatíveis à realidade das mulheres e suas necessidades. Precisam estar mais próximo de locais com maior índice de violência, com horários ampliados, em regimes de plantões e estabelecer fluxos com toda a rede de justiça para um atendimento integral e protetivo.

A promotora destaca ainda que as casas de passagem são importantes para que as mulheres aguardem as decisões sobre medidas protetivas, retornando ao lar com maior segurança quando estas entrarem em vigor. “É preciso planejamento de políticas públicas com base em evidências, para que sejam implementadas constantemente, monitoradas e reavaliadas, ressalta”.

Acolhimento

No Distrito Federal, existe apenas uma Casa da Mulher Brasileira (CMB). O local fica em Ceilândia, funciona 24h, todos os dias e oferece atendimento humanizado, psicossocial e capacitação profissional às mulheres. Além disso, a Casa dá suporte às vítimas de violência doméstica, ajuda na resolução da ocorrência, com o apoio da Defensoria Pública, do Ministério Público, da Polícia Civil e do Tribunal de Justiça.

A secretária da Mulher, Giselle Ferreira, explica que desde o início à frente da pasta da mulher, viu a necessidade de manter os equipamentos públicos próximos da população para atender a mulher. Diante disso, a Secretaria iniciou o trabalho para a criação de mais quatro casas de atendimento à mulher que serão construídas ainda este ano. As novas unidades serão erguidas nas regiões sul e norte de Brasília. No Sol Nascente e Recanto das Emas, na região Sul, e Sobradinho II e São Sebastião na região Norte vão receber as Casas.

De acordo com a secretária, “as ordens de serviço foram assinadas e as obras estão em andamento em pelo menos dois lugares, São Sebastião e Sobradinho II. A previsão é de que em 180 dias, a população receba as quatro novas unidades”, afirma.

PAULO H CARVALHO/Agência Brasília -
Marcelo Ferreira/CB/D.A Press -

“Além das Casas, estamos promovendo ações de prevenção a violência. Pela primeira vez, aderimos a uma campanha institucional chamando a população para a responsabilidade de denunciar, porque esse problema é de todos nós, sociedade, Estado e também da família”, acredita. “Sabemos que em cerca de 70% dos casos de feminicídios, a vítima não havia apresentado denúncia e em 67% dos casos pelo menos um familiar sabia das agressões sofridas. O apelo é para que toda a sociedade se envolva nesta pauta, porque a denúncia salva vidas”, alerta a secretária Giselle.

De acordo com o Ministério das Mulheres, os Centros de Referência da Mulher Brasileira são serviços com atendimento psicossocial e jurídico que acolhem e encaminham a mulher em situação de violência para os demais serviços da rede. A iniciativa faz parte do Programa Mulher Viver sem Violência, coordenado pela Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres.

O Ministério também está reestruturando a Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180, com enfoque na ampliação de serviços prestados no atendimento às mulheres, com acolhimento de forma humanizada e lançamento do atendimento exclusivo via chat no WhatsApp.

Prevenção

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP-DF) informou que o enfrentamento à violência contra a mulher é uma das prioridades da atual gestão. Para isso, a pasta tem implementado diversas ações voltadas à prevenção e combate. “Como estratégia de prevenção, a SSP/DF desenvolve uma série de iniciativas e ações voltadas para coibir os crimes”.

Umas das iniciativas é o Serviço de Proteção à Mulher, que monitora vítimas e autores de violência doméstica. Criado em 2021, o serviço é oferecido especificamente às vítimas que possuem Medida Protetiva de Urgência (MPU). Além do monitoramento, a medida mantem o agressor afastado de locais determinados pela justiça, conhecidos como “zonas de exclusão". Se houver violação das restrições, as viaturas são imediatamente acionadas. A vítima é monitorada por prazo determinado em juízo e depois é encaminhada ao Programa Viva Flor, um aplicativo que agiliza o atendimento para mulheres em situação de vulnerabilidade social.

Segundo a SSP/DF, desde a criação do programa, em 2021, até junho de 2023, 370 pessoas foram monitoradas na capital e houve nove prisões em flagrante por descumprimento de medidas.
Policiamento

Além das ações de prevenção, o policiamento é fundamental para garantir segurança à mulher. A Polícia Militar do DF (PMDF) disponibiliza o Programa de Prevenção Orientada à Violência Doméstica (Provid), que em 2022 e realizou 19.383 visitas familiares.

O policiamento é reforçado pela Polícia Civil (PCDF), que conta com Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deam I e II), onde as vítimas podem registrar Boletim de Ocorrência, na Maria da Penha Online, além de representar contra o autor da violência e enviar provas com fotos e vídeos.

Não se cale! Onde procurar atendimento em situações de violência contra a mulher:

PCDF:

  • Denúncia on-line: https://is.gd/obhveF
  • E-mail: denuncia197@pcdf.df.gov.br
  • Telefone: 197 opção 0
  • WhatsApp: (61) 998626-1197

PMDF:

  • Atendimento através do número 190

*Estagiário sob a supervisão de Ana Maria Campos

Saiba Mais

Uma visão holística no enfrentamento à violência contra as mulheres

Thiago Pierobom
Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT)

A violência contra as mulheres é um fenômeno complexo e multicausal. Apesar de haver fatores que elevam o risco de ocorrência de violência, como uso abusivo de álcool, histórico de comportamentos violentos ou fácil acesso a arma de fogo, especialistas concordam que a raiz profunda da violência contra as mulheres está na desigualdade de gênero, na legitimação de papéis sociais estereotipados que normalizam a violência disciplinar masculina.

Portanto, o enfrentamento à violência contra as mulheres deve ocorrer em múltiplas frentes, de forma transversal e intersetorial. A prevenção primária ocorre no nível educacional, de inserção de mulheres no mercado de trabalho e espaços de poder, promovendo-se mudança de valores socioculturais a longo prazo. É necessário o envolvimento de profissionais de saúde básica e assistência social, com protocolos para o diagnóstico precoce do risco e rotinas de referência a serviços de apoio psicossocial. Precisamos de campanhas de conscientização social para que os homens possam demandar os serviços de reflexão de forma espontânea, antes que a violência escale.

Deveria haver comitês de gestão do risco nos territórios, com reuniões periódicas dos diversos órgãos públicos para articular intervenções protetivas individualizadas ao caso, especialmente para as situações de risco elevado. É necessário monitorar as medidas protetivas de urgência, com contatos periódicos às mulheres.

Finalmente, apesar do inegável engajamento de diversos profissionais do sistema de justiça, é preciso avançar na sensibilização de gênero. Mesmo após o advento da Lei n. 14.550/2023, ainda existem decisões denegando a aplicação da Lei Maria da Penha por suposta ausência de “motivação de gênero” e fixando prazos de poucos meses para a vigência das medidas protetivas. Muitos juízes resistem em conceder medidas protetivas ao ofensor de acompanhamento psicossocial ou tratamento para uso abusivo de substâncias entorpecentes. O TJDFT precisa urgentemente uniformizar sua jurisprudência a fim de promover segurança jurídica e proteção integral às mulheres.

Não se cale! Procure ajuda

Onde procurar atendimento em situações de violência contra a mulher:

PCDF:

Denúncia on-line: https://is.gd/obhveF

E-mail: denuncia197@pcdf.df.gov.br

Telefone: 197 opção 0 

WhatsApp: (61) 998626-1197

PMDF:

Atendimento através do número 190