SISTEMA PRISIONAL

Em relatório, órgãos denunciam violações a direitos de detentos na Papuda

Comissão da CLDF recebeu, apenas em outubro, 87 queixas de detentos da Papuda. Ordem dos Advogados afirma que não há como ressocializar presos do DF nas atuais condições de encarceramento

Apenas em outubro, a comissão recebeu 87 queixas de detentos dentro do Complexo Penitenciário da Papuda -  (crédito: ED ALVES/CB/D.A.Press)
Apenas em outubro, a comissão recebeu 87 queixas de detentos dentro do Complexo Penitenciário da Papuda - (crédito: ED ALVES/CB/D.A.Press)
postado em 02/11/2023 06:00 / atualizado em 02/11/2023 16:00

Relatório de denúncias de violações dos direitos humanos no sistema prisional no Distrito Federal, elaborado pela Câmara Legislativa (CLDF), mostra que entre o período de 2019 a agosto de 2023, 2.143 ocorrências de detentos foram encaminhadas à Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, Ética e Decoro Parlamentar da Casa. Os números são consequência do crescimento da população carcerária na capital federal, onde há 16.933 detentos acomodados em 7.885 vagas, do Complexo Penitenciário da Papuda.

O relatório traz o detalhamento de ocorrências de 2019 a 2022 — o número de 2023 ainda não foi especificado pela comissão. No período, os tipos de queixas recebidas pelos distritais são variados, mas as mais recorrentes são de torturas cometidas por agentes penais (532); a falta de visitas e incomunicabilidade com membros da família (443); a má qualidade da alimentação fornecida e condições de higiene (261); e a falta de assistência à saúde (257).

Conforme o levantamento, em 2020, por ocasião da pandemia de covid-19, a maior demanda dos detentos foi relacionada à saúde. O documento traz que nesse período, 197 denúncias de detentos foram encaminhadas aos distritais, que citavam medo por risco de transmissão da doença e a falta de vacinação. De acordo com o levantamento mais recente, de abril de 2020 a outubro deste ano, oito presos morreram em decorrência do coronavírus — não tendo sido registradas mortes em 2022 e em 2023.

Existem outras reclamações dos detentos. Entre as principais denúncias, estão a de falta de água; "bate fundo" — quando roupas e pertences dos detentos são extraídos; falta de medicação; além da própria superlotação das celas, com condições precárias; entre outros. Somente em outubro, 87 denúncias foram apresentadas à comissão — média de 2,8 por dia.

Tortura e mortes

O documento mostra que, com exceção de 2020, a maior reivindicação dos demais anos eram sobre constantes casos de tortura e maus tratos. Uma das cartas que a reportagem obteve com exclusividade é de um detento, que menciona estar escrevendo a mensagem por conta da realidade sofrida dentro da Penitenciária I, do Complexo Penitenciário da Papuda. O detento que não se identifica no texto, para evitar represálias, cita que são tratados que nem "bichos" pelos policiais penais.

"Diariamente, falta alimento nas celas. De dois meses pra cá, todos os dias a 'xepa' do almoço vem azeda, os alimentos da cantina estão sendo cancelados aos poucos e a nossa visita que antes era de 15 em 15 dias com duração de seis horas, hoje está sendo de 21 em 21 dias com duração de apenas uma hora sem parlatório", escreveu o detento.

O detento acrescenta que os presos não passam fome, mas que a comida fornecida não supre a necessidade deles. "Nós não estamos passando fome, mas a alimentação que nos é fornecida, não supre as nossas necessidades. Da forma que a polícia fala, até parece ser muito; duas 'xepas', dois pães, um suco, um Toddy, mas a nossa realidade é outra. A 'xepa' que eles relatam vir com 600 gramas, 300 é de xuxu (sic) ou de outros tipos de vegetais desconhecidos (...) O que era para ser um lugar de ressocialização, está se transformando em um barril de pólvoras, cheio de ódio e sofrimento prestes a explodir. Portanto, como é de conhecimento de ambas as partes, nós não temos força aqui dentro", completa o detento, que pediu que a corrente se espalhe em outras celas, por meio do grupo de "WhatsApp" que existe dentro do complexo entre os presidiários.

Além dessa e de outras cartas, o relatório mostra casos em que a comissão precisou agir, como na prisão do ativista filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT) Rodrigo Grassi Cademartori, o Rodrigo Pilha. Em abril de 2021, o ativista ficou preso no Centro de Detenção Provisória II, no Distrito Federal, após ter sido detido em uma manifestação por supostamente associar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ao nazismo. Pilha deixou a Papuda em julho, e relatou ter sido torturado por três policiais penais.

Outro caso é o do interno Leandro Oliveira Silva, que teria sofrido torturas por parte de agentes, que teriam omitido prestar socorro, levando o preso ao óbito. A comissão cita que, conforme relatos, Silva passou mal e os internos que dividiam a mesma cela solicitaram socorro. O preso teria sido levado a uma sala fria, com apenas a roupa do corpo. Segundo testemunhas disseram à comissão, o detento passou por frio intenso e foi encaminhado a uma unidade de saúde apenas seis horas depois. Ele morreu no Hospital Regional da Asa Norte. 

Responsabilidade

Para o presidente da comissão, deputado distrital Fábio Felix (PSol), a situação do sistema prisional é uma tragédia humanitária. Ele relembra que a comissão não tem poder de investigar denúncias, e que sempre pede a apuração dos órgãos competentes nas queixas recebidas. O cenário, na visão do parlamentar, atrapalharia a ressocialização. "Depois da pandemia, as visitas não voltaram à normalidade. Elas não conseguem fazer as visitas de forma regular, com a entrada de alimentos, além de levar os filhos para verem os pais. Isso gera uma limitação do direito à visita, e sabemos que ela é um dos momentos mais importantes no processo de ressocialização", afirma.

"Se a ideia do sistema é de ressocializar, é preciso que tenha acesso à educação, profissionalização, atendimento psicossocial. É um sistema muito caro, mas que não entrega para a sociedade o seu objetivo: responsabilizar pelos crimes cometidos, mas ao mesmo tempo devolver pessoas melhores à sociedade do que elas entraram ali", pontua o distrital.

Os presidentes da Comissões de Assuntos Penitenciários e de Direitos Humanos da Seccional do Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), Adrielle Brendha Macedo Maturino e Idamar Borges Vieira, respectivamente, citam que na capital federal, o cenário apresentado nas unidades prisionais gera consequências que afetam em todos os graus, a dignidade da pessoa humana. "Dentre as principais e a título de exemplo, a insuficiência do Estado em arcar com as responsabilidades derivadas do exercício do seu poder de punir, como o fornecimento de uma alimentação que não consegue observar as balizas de qualidade ou quantidade mínimas ao estipular valores contratuais potencialmente inexequíveis com a finalidade de atender uma população maior do que poderia comportar em seus muros", explicam.

"Outra é a impossibilidade de prover atendimento à saúde e educação a todos, diante da insuficiência, em termos quantitativos, do quadro funcional dos profissionais que desempenham suas funções no sistema penitenciário, visto que a população carcerária ultrapassa os limites, minimamente. Além da notória sobrecarga da polícia penal que, além de tentar desempenhar as suas funções como responsáveis das garantia dos direitos humanos intramuros, precisam sustentar, também com déficit em seu quadro funcional, todos os problemas decorrentes da superlotação sem apoio estatal no seu plano de carreira e na assistência psicossocial", citam. "Note-se que os exemplos elencados fazem parte de uma lógica trágica do sistema: não há como garantir direitos, sobretudo os fundamentais, em um espaço ocupado com pessoas para além da sua capacidade. Se não há sequer espaço para abarcar as pessoas privadas de liberdade, é impossível dizer que haverá espaço para uma alimentação adequada, educação, saúde, trabalho e visitas", pontuam os advogados.

Os juristas ainda revelam que, dadas as circunstâncias do atual contexto do sistema prisional, não há a mínima possibilidade de ressocialização dos detentos, seja pela falta de políticas públicas ou quadros funcionais com profissionais responsáveis pela garantia dos direitos. "Não temos psicólogos, pedagogos, profissionais de saúde, policiais penais e outros profissionais, em termos quantitativos, suficientes para cumprir com o disposto na Lei de Execução Penal e no Código Penitenciário do Distrito Federal, no tocante à reintegração social e a garantia dos direitos das pessoas privadas de liberdade", pontuam.

"A título de exemplo, se temos, aproximadamente, 9 mil vagas para as espécies legais de custódia, é para essa quantidade que o Estado se projeta. Em contrapartida, ocupamos as 9 mil vagas com um número aproximado de 16 mil pessoas. A simples conta matemática revela um problema crítico em uma fórmula objetiva. Agora, imaginemos a transposição da conta matemática para a subjetividade do ser humano, com todas as suas necessidades, e a imprescindibilidade de uma existência digna", acrescentam os presidentes.

Como parte de solução para os problemas, os distritais sugeriram o videomonitoramento do sistema prisional, adquirindo e inserindo câmeras corporais em policiais penais. As gravações de vídeo, segundo o projeto, podem servir como evidência em investigações internas ou criminais de incidentes que ocorrem dentro das prisões. O projeto tramita na Comissão de Segurança. "Já propusemos ao governo a criação de uma carreira para atendimento psicossocial no sistema prisional. Além disso, é urgente a adoção de políticas de educação e de empregabilidade para a efetiva ressocialização das pessoas em privação de liberdade", disse o parlamentar.

"Recebemos muitas denúncias sobre a falta de assistência à saúde dos presos e temos cobrado o reforço do quadro clínico para ampliação da cobertura. São graves as negligências reportadas, com agravamento de doenças e óbitos em presídios. Outra medida fundamental que temos reivindicado é o controle social da atuação dos agentes. Recomendamos a utilização de câmeras corporais por parte dos policiais penais. Estamos falando de medidas urgentes e que não podem mais ser adiadas", completou o parlamentar.

Relatório

Em paralelo, há um relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), divulgado em agosto — mesmo período do levantamento apresentado pela CLDF — que visitou quatro unidades de privação de liberdade no Distrito Federa em março de 2022, sendo inspecionada duas unidades socioeducativas, uma unidade da rede de atenção psicossocial e uma unidade de longa permanência para idosos.

O documento, de 155 páginas, veiculado pelo Ministério dos Direitos Humanos, sugere 53 recomendações aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Na capital federal, o relatório cita que o uso de algemas é considerado regra e não a exceção no sistema socioeducativo do DF. Segundo o órgão, os agentes penitenciários utilizam sempre a justificativa de segurança e da iminente fuga, "fazendo parecer que as unidade estão o tempo todo em um estado de pré-rebelião". O uso indiscriminado de algemas não obedece determinações do Supremo Tribunal Federal (STF). 

Nas inspeções, o MNPCT revelou estar evidente a prática de torturas e sanções coletivas. Aos inspetores, detentos contaram que dentro das unidades, há humilhação por parte dos agentes, e que a todo custo são castigos em função dos atos que respondem. Eles também apontam que há o uso abusivo e indiscriminado de espargidor contra adolescentes dentro do veículo de transporte, causando ardência nos olhos e nariz, além de irritação no sistema respiratório.

Uma das soluções propostas pelo órgão é a contratação de profissionais capacitados no atendimento, como equipes multiprofissionais para efetivação da desinstitucionalização e cuidado terapêutico, além de mudanças na metodologia cotidiana dos agentes. 

Procurada, a Secretaria de Administração Penitenciária do Distrito Federal (Seape-DF) respondeu que as visitas são realizadas semanalmente todas às quartas e quintas-feiras em sistema de revezamento entre os blocos das unidades prisionais, além das visitas especiais para as crianças que seguem calendário próprio por ser de caráter excepcional. "Sendo assim, a periodicidade da visita de um custodiado é de no máximo 14 dias, nos moldes da PORTARIA Nº 200, DE 11 DE JULHO DE 2022. No momento da entrada do custodiado no sistema penitenciário, ele recebe um formulário para cadastrar seus visitantes e, no decorrer do cumprimento da pena, é possível fazer alterações, de acordo com a portaria Nº 199, de 11 de julho de 2022", explicou a pasta (veja nota completa abaixo).

Sobre denúncias, a Seape explicou que apura, rotineiramente, toda e qualquer denúncia relacionada ao sistema penitenciário por meio de procedimentos apuratórios, porém, grande parte das comunicações de violações não apresentam elementos mínimos que subsidiem a instauração de Procedimento Administrativo Disciplinar. "Isso demonstra o compromisso da pasta em coibir quaisquer desvio e conduta dos seus servidores, e em manter o compromisso em sua função estatal de garantir a execução da pena imposta ao custodiado com objetivo de sua plena reinserção social com base na constituição federal", disse a secretaria.

"Sobre as visitas: as visitas em todas as unidades do sistema prisional são realizadas semanalmente todas às quartas e quintas-feiras em sistema de revezamento entre os blocos das unidades prisionais, além das visitas especiais para as crianças que seguem calendário próprio por ser de caráter excepcional. Sendo assim, a periodicidade da visita de um custodiado é de no máximo 14 dias, nos moldes da portaria n° 200, de 11 de julho de 2022. No momento da entrada do custodiado no sistema penitenciário, ele recebe um formulário para cadastrar seus visitantes e, no decorrer do cumprimento da pena, é possível fazer alterações, de acordo com a portaria nº 199, de 11 de julho de 2022.

Sobre alimentação: Os contratos de alimentação das refeições servidas nas unidades prisionais são objeto de extrema diligência por parte dos gestores desta secretaria, tendo em vista que o fornecimento de uma alimentação de boa qualidade é um dos aspectos contratuais a serem seguidos pelas empresas contratadas. Cada unidade prisional realiza fiscalizações diárias sobre as condições gerais dos alimentos disponibilizados pela empresa contratada. São observadas a temperatura, a armazenagem e a gramatura, item a item, e se o cardápio contratado está sendo respeitado conforme portaria PORTARIA Nº 50, DE 16 DE FEVEREIRO DE 2022. Além disso, a Seape/DF conta com uma equipe de executores de contrato que acompanham semanalmente, junto às nutricionistas das empresas contratadas, os itens disponibilizados para alimentação dos reeducandos, bem como o armazenamento em depósitos e funcionamento das cozinhas, como prega o CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS Nº 038/2020-SSPDF. Essas fiscalizações são acompanhadas pelos demais órgãos do Poder Público e tem correlação direta com o princípio da dignidade da pessoa humana e com outras normas de matriz constitucional, como doutrina a PORTARIA Nº 08, DE 14 DE JANEIRO DE 2021 e PORTARIA Nº 50, DE 16 DE FEVEREIRO DE 2022.

Sobre higiene: Mensalmente, o Estado fornece aos custodiados kits para asseio pessoal, como sabonete, desodorante, sabão em pó e em barra, escovas de dentes, entre outros itens - de acordo com a PORTARIA Nº 231, DE 04 DE AGOSTO DE 2022. Além deste fornecimento, a Seape/DF permite a entrada de itens complementares pelo visitante - PORTARIA Nº 80, DE 15 DE MARÇO DE 2023 e, como prevê a Lei de Execuções Penais em seu artigo 39, é dever do custodiado o asseio das celas e alojamentos.

Sobre mental e fisiológica: Toda unidade penal é composta por uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de responsabilidade da Secretaria de Estado de Saúde (SES/DF). Desta forma, o reeducando recebe atendimento imediato às demandas de urgência. Quando o atendimento não é possível nesta UBS, a administração penitenciária se encarrega de realizar a escolta hospitalar aos hospitais de referência do Distrito Federal. Prova disso foram os mais de 97 mil procedimentos de saúde realizados no sistema prisional de janeiro a julho deste ano.

Por fim, a Secretaria de Administração Penitenciária informa que apura rotineiramente toda e qualquer denúncia relacionada ao sistema penitenciário por meio de procedimentos apuratórios, porém, grande parte das comunicações de violações não apresentam elementos mínimos que subsidiem a instauração de Procedimento Administrativo Disciplinar. Isso demonstra o compromisso da pasta em coibir quaisquer desvio e conduta dos seus servidores, e em manter o compromisso em sua função estatal de garantir a execução da pena imposta ao custodiado com objetivo de sua plena reinserção social com base na constituição federal."

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