Entrevista

Igualdade racial: Luta por espaços precisa de toda a sociedade, aponta juiz

No Brasil, menos de 200 magistrados são negros. Entre as mulheres o número é menor ainda, não chegando a 50 juízas pretas. A ocupação de espaços de poder é importante para o equilíbrio da sociedade e de políticas afirmativas

 CB Poder recebe Fábio Esteves, juiz instrutor no Supremo Tribunal Superior (STF) e membro do FONAJURD. Na bancada, as jornalistas Rosane Garcia e Adriana Bernardes.  -  (crédito: Kayo Magalhães/CB/D.A Press)
CB Poder recebe Fábio Esteves, juiz instrutor no Supremo Tribunal Superior (STF) e membro do FONAJURD. Na bancada, as jornalistas Rosane Garcia e Adriana Bernardes. - (crédito: Kayo Magalhães/CB/D.A Press)
postado em 21/11/2023 06:00

A falta de pessoas negras nos espaços de tomada de decisões pode prejudicar a luta pela igualdade racial dentro da sociedade. O tema foi debatido com Fábio Esteves, juiz instrutor do Supremo Tribunal Federal (STF), durante o programa CB. Poder — parceria entre o Correio Braziliense e a TV Brasília. Membro do Fórum Nacional de Juízes e Juízas Contra o Racismo e Todas as Formas de Descriminação (Fonajurd), às jornalistas Adriana Bernardes e Rosane Garcia, ele explicou, ontem, que há "uma evolução, porém o processo é lento e talvez a sociedade alcance a tão sonhada igualdade, solidariedade, somente daqui 100 anos". No Brasil, menos de 200 magistrados são negros e menos de 50 juízas pretas.

O que é consciência racial?

É importante sempre destacar que não estamos aqui tratando de um aspecto biológico de raça. Nós estamos tratando de uma consciência a partir de uma participação sócio-política ou de uma separação sócio-política das pessoas em grupos raciais. Os grupos foram racializados, a partir de um aspecto sócio-político. Quando a gente toma consciência racial, significa dizer que eu tomo consciência de que participo de um desses grupos, que pertenço a um desses grupos com cultura, tradição, um percurso histórico, experiência de vida, coletividade. Enfim, existe todo um conjunto de elementos que têm relação com a minha subjetividade. Eu Fábio Esteves tenho uma trajetória de vida que está ligada a um grupo social no Brasil e no mundo. Isso diz tudo sobre quem eu sou. Quando falamos sobre tomar consciência disso, significa entender a minha ancestralidade, a história do meu grupo e, o lugar que o meu grupo permite que eu esteja hoje no contexto de uma sociedade. Quando nós tomamos consciência da nossa negritude, significa dizer que nós temos uma história que podemos chamar de travessia no Atlântico Negro, que contribuímos para a economia, cultura e ciência do Brasil por mais de 388 anos na condição de pessoas escravizadas. Isso fez com que apagassem todas as nossas memórias.

Como o senhor tem visto essa realidade nos tribunais?

As pessoas (negras) não estão querendo tomar o lugar de ninguém, é só o reequilíbrio. Ao observarmos que o racismo está ligado ao poder, a gente não vai avançar caso continuemos com os espaços de poder, especialmente no sistema de Justiça, sem a presença da população negra no espaço de tomada de decisão, seja ele político, judicial e administrativo. Nós temos um avanço muito grande de mudança, quando a magistratura também se apresenta como negra. Quando tivermos a ocupação de juízes e juízas negras em alguns espaços de discussão, no âmbito do poder judiciário, começaremos a perceber a circulação da discussão. Temos hoje no âmbito do CNJ um centro produtor de discussões, que circula nos 92 tribunais que temos. Isso porque as pessoas negras estão nesses lugares.

O que a desigualdade representa na lei?

A constituição do Brasil veio para reconstruir uma sociedade desigual. E ela passou a ser uma disputa material que está relacionada à igualdade. Podemos dizer que os desigualados estão buscando cidadania racial, e aqueles que são privilegiados estão tentando manter seus privilégios. O nosso racismo funciona pois existem pessoas que se beneficiam dele.

E como a falta de educação pode prejudicar esse movimento?

Nós temos leis e a materialização delas depende de atitudes e da maneira que nós vamos produzir os sentidos. Se eu a entregar para uma comunidade escolar, que não tenha diversidade racial entre aqueles que produzem os saberes, será uma lei morta. Em termos de educação, nós devemos ficar atentos aos entulhos que carregamos. Na constituição de 1937 expressamente prevê que devemos ter uma educação eugenista, ou seja, uma educação que mostrasse quais raças eram melhores. Nós devemos pensar na estrutura e instituição, e isso está ligado ao poder. Quando se fala que há mais de 20 anos existem cotas nas universidades, devemos nos perguntar como está o corpo discente, pois é a hora de ter professores negros nas universidades.

O que serão os eventos promovidos pela Enajund e Fonajurd?

Juízes e juízas negras estão promovendo um encontro para a magistratura e a sociedade que também está convidada a participar. O evento acontece de 22 a 24 de novembro, às 19h, no Tribunal Superior do Trabalho (TST). Este ano, será discutido a memória da luta, história e vivências das pessoas negras no Brasil. Nos mesmos dias, acontecerá o 6º Encontro Nacional de Juízes Negros. Também teremos o 4° Fonajurd, um ambiente para todos os juízes debaterem a igualdade. O Enajun tem hoje muito o que celebrar e se preocupar com a sequência da caminhada, pois precisamos olhar para o futuro sabendo que as previsões não são tão otimistas. Nós tínhamos uma meta de 22,5% de juízes negros na magistratura brasileira no ano 2025, quando termina a década internacional do afrodescendente. Descobrimos que só chegaremos nesse percentual em 2079. Mas estamos avançando, este ano o Enajun foi incluído dentro da primeira jornada pela equidade racial nos tribunais superiores, algo inédito.

Como você se sente nessa construção de ter um espaço? Como é lidar com as pessoas que não reconhecem os negros como um cidadão?

É sempre uma luta constante. Hoje nós estamos em uma busca da cidadania racial. Quando eu digo isso não estou falando só sobre mim, mas sim sobre tantos. A cidadania racial é uma luta incansável de pessoas negras e aliados. É importante dizer que o racismo não é um problema da população negra, é um problema de todos. Evidentemente, há muitas pessoas que defendem a inexistência deste fenômeno na sociedade e instituições, ou que de alguma forma não tão ostensiva, defendam a manutenção dele. Nós vemos isso em diversas manifestações, especialmente quando desqualifica algum tipo de mecanismo para que haja mobilidade social e econômica da população negra. Muitas vezes as pessoas acham que o racismo só é um ato verbal que de alguma maneira desumaniza o sujeito, mas não, quando a gente não permite, por exemplo, saúde de qualidade para essa população, quando bloqueiam essa população do acesso a cargos públicos, universidade ou outros espaços de poder, como espaço político. Dessa forma, nós estamos sustentando uma estrutura racializada e não tem outra explicação. A luta pela cidadania racial é a remoção desses entulhos ou desses estoques que nós tivemos do maior período escravagista do mundo.

Como foi seu processo de tomada de consciência? 

Nem eu ou minha família, talvez, tivéssemos essa consciência do pertencimento racial há muito tempo. É claro que nós sabíamos que nossa condição e subjetividade estabelece de alguma maneira, a forma como nós seríamos tratados no mundo. Violência racial, preconceito e algum ato de discriminação, sempre fazia a gente sentir que algo estava errado. À medida que vou tendo mobilidade social, vai se tornando cada vez mais claro. Tornando cada vez mais concreto e material que havia solidão nesses espaços que eu ocupava. Solidão no sentido de ser poucos de mim ou quando era apenas eu, e o estranhamento. Quando estou dentro de um processo profissional, acadêmico e outros tantos espaços que uma certa mobilidade me permitiu ocupar, começo então a perceber que o desconforto se acentua muito. É quando eu preciso entender o porquê disso, e a consciência racial ela vai se constituindo e se materializando. É quando eu compreendo o meu lugar no mundo, dentro desses espaço e na sociedade.

*Estagiário sob a supervisão de Suzano Almeida 

  •  CB Poder recebe Fábio Esteves, juiz instrutor no Supremo Tribunal Superior (STF) e membro do FONAJURD. Na bancada, as jornalistas Rosane Garcia e Adriana Bernardes.
    CB Poder recebe Fábio Esteves, juiz instrutor no Supremo Tribunal Superior (STF) e membro do FONAJURD. Na bancada, as jornalistas Rosane Garcia e Adriana Bernardes. Foto: Kayo Magalhães/CB/D.A Press
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