Acredito que todos os escritores partilham de uma mesma urgência: a de libertar palavras que, se não fossem escritas, apodreceriam por dentro. Eu, admiradora de Caio Fernando Abreu, parafraseio meu mestre, que descreve escrever como enfiar um dedo na garganta: "Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta."
Foi-me dado este dia 25 para ocupar o espaço literário do jornal e, devido ao simbolismo que a data carrega, o tema desta crônica não poderia ser outro senão o Natal. Mesmo assim, atenho-me ao meu ritual: escrevo o que vivo, o que vejo e o que sinto. Não danço pelas letras sem antes enfiar o dedo em minha garganta, vomitar e moldar o que saiu das minhas entranhas. Então perdoe-me, leitor, se esta não for a história natalina que imaginara ler ao abrir as notícias desta quinta-feira.
Agora que introduzi o tom de minhas palavras, podemos, enfim, seguir para a história. Em dezembro de 1843, Dickens escreveu Um Conto de Natal. O clássico, originalmente criado para que o escritor conseguisse pagar suas dívidas, consagrou-se como uma célebre obra natalina. Aos que não leram, provavelmente conhecem suas adaptações cinematográficas: Scrooge, um homem rico que despreza o Natal, é visitado por três fantasmas — espíritos que representam o passado, o presente e o futuro, e o conduzem em uma viagem astral para que perceba o verdadeiro significado natalino.
O contexto do personagem será aplicado ao Natal brasiliense — não como adaptação literal, mas como espelho torto. Aqui, os fantasmas não aparecem envoltos em lençóis etéreos, mas atravessam a cidade, muitas vezes em forma de ausências, plantões e luzes artificiais.
O primeiro espírito é o da cidade vazia. Brasília, que já é espaçosa demais nos dias úteis, no Natal vira quase ensaio de maquete. As superquadras silenciam, os eixos alongam o eco, e quem fica aprende rapidamente que o calendário também expulsa ao final do ano. Há sempre alguém que não voltou para casa, alguém que não tinha para onde ir, alguém que escolheu ficar — mas todas essas versões convivem com a mesma sensação: a de que a festa acontece longe. Brasília, neste dia, parece observar seus moradores como quem assiste a um Natal alheio pela televisão desligada.
O segundo fantasma é o do trabalho em dia santo. Porteiros que desejam "feliz Natal" com a naturalidade de quem repete um gesto automático. Motoristas que atravessam a madrugada com o rádio baixo. Profissionais da saúde que medem o tempo em turnos, não em brindes. A jornalista que vos fala. Há bares abertos, hospitais cheios, prédios acordados. Enquanto uns descansam, outros sustentam o mundo funcionando — e esse também é um ritual, embora raramente celebrado. Não por acaso, este é o segundo Natal da minha vida que passo longe da minha família e de Minas Gerais, e celebro acompanhada dos meus colegas de trabalho e de minhas assombrações autorais.
O terceiro espírito se manifesta nas luzes da cidade. Em meu apartamento, não há árvore de Natal, mas existem LEDs piscando no canteiro central. Não tenho ceia montada, mas vejo os reflexos verdes e vermelhos nas janelas. O Natal urbano substitui o doméstico sem pedir licença. A decoração pública acaba virando cenário íntimo, e o afeto precisa aprender a caber em espaços improvisados.
Neste contexto, a viagem mística termina onde começam as novas tradições possíveis. Amigos que se juntam porque a família ficou longe. Mesas pequenas, pratos desencontrados, convenções inventadas na hora. Não há manual, não há coral infantil, não há fotografia perfeita, mas há presença. E talvez isso seja o que mais se aproxima da ideia original de Natal: gente tentando estar junto apesar das circunstâncias.
Dickens ofereceu redenção a Scrooge por meio do assombro. Brasília, mais contida, oferece outra coisa: silêncio suficiente para ouvir o que sobra. O Natal aqui não grita. Ele sussurra nos corredores, nas portarias, nos bares vazios, nas janelas acesas em meio a tantas apagadas. E talvez seja justamente nesse sussurro que algumas palavras encontrem saída. Assim, sacio uma fome que só se cala quando vira escrita. Feliz Natal.
