Se há um ano pouquíssimas pessoas sabiam nomear laboratórios produtores de vacina, em 2020, marcas como AstraZeneca, Moderna e Sinovac entraram para o vocabulário do dia a dia. Embora essas sejam as desenvolvedoras de alguns dos imunizantes mais aguardados para combater a pandemia da covid-19, elas não são únicas. Um levantamento da Coalition for Epidemic Preparedness Innovation (CEPI), coalizão de cientistas focada em novas tecnologias para enfrentamento de doenças contagiosas, contabilizou mais de 300 substâncias sendo investigadas. O Brasil não está de fora. Além de participar dos testes das multinacionais, universidades e institutos de pesquisa do país buscam criar vacinas para o Sars-CoV-2 100% nacionais.
Com investimentos de agências financiadoras, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e do Ministério de Ciência e Tecnologia, os cientistas trabalham em vacinas que usam diferentes plataformas e, mesmo atrás dos laboratórios estrangeiros, tanto no que diz respeito a orçamento quanto à fase em que se encontram os estudos, a maioria espera começar os testes em humanos em 2021. “A ciência brasileira tem mostrado uma capacidade desproporcional ao investimento que recebe”, diz o virologista Flávio Fonseca, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Fonseca e o imunologista Ricardo Gazzinelli estão à frente do desenvolvimento de uma vacina, em parceria com a Ficocruz-Minas e o Instituto Butantan (SP), que usa o vírus da influenza atenuado, no qual é inserida a proteína spike, do Sars-CoV-2. A ideia é oferecer uma dupla proteção, estimulando o organismo a produzir anticorpos neutralizantes tanto contra a gripe quanto contra a covid-19. Além do grupo mineiro, somente uma equipe alemã testa uma estratégia semelhante.
Assim como as demais pesquisas brasileiras de uma vacina para a covid-19, a da UFMG está em fase pré-clínica, com testes em animais. Por enquanto, os cientistas demonstraram que a fórmula funciona em camundongos. Porém, ainda é preciso checar se, na presença do vírus, os anticorpos são capazes de destruir o Sars-CoV-2. A expectativa de Fonseca é iniciar essa etapa em outubro. “Mas, enfrentamos uma série de problemas. Não temos um laboratório III, que é o nível de segurança necessário para testes mais complexos com vírus”, diz. Apesar disso, o cientista espera que os ensaios com humanos comecem no próximo ano e que as pesquisas com voluntários terminem em meados de 2022.
Flávio Fonseca destaca que, mesmo se outras vacinas começarem a ser comercializadas enquanto os imunizantes brasileiros ainda estão em fase de testes, é preciso ter diversas opções, ainda mais quando se fala de uma pandemia. A Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou diversas vezes que a covid-19 poderá ser sazonal, assim como a influenza, o que exigirá um protocolo de vacinação periódico. “Temos de ter o mínimo de poder de autossuficiência. O Brasil não pode mais ser um país consumidor de tecnologia. A pandemia mostrou o preço disso”, afirma.
A mesma opinião tem o biólogo Gustavo Cabral de Miranda, que, depois de cinco anos de pós-doutorado na Suíça e na Inglaterra, voltou ao Brasil para trabalhar no desenvolvimento de vacinas para zika e chicungunha. Atualmente, além desse projeto, ele busca uma substância contra a covid-19 a partir da mesma tecnologia: de VLPs (proteínas semelhantes ao vírus). O cientista do Laboratório de Imunologia do Incor, da Universidade de São Paulo (USP), conta que recebeu R$ 200 mil para tanto (o estudo da vacina envolve outros pesquisadores, em outras frentes, e cada um conta com um orçamento próprio). “Para comparar, o (presidente) Bolsonaro disse no discurso na ONU que investiu R$ 2,2 bilhões para trazer os testes da vacina da Universidade de Oxford para cá”, diz.
“A gente vai chegar”
A plataforma na qual Miranda trabalha consiste em partículas multiproteicas que, por imitarem as virais, geram anticorpos contra o micro-organismo. Segundo Cabral, embora as substâncias que usam vírus atenuados ou inativados costumem gerar uma boa resposta imunológica, como o Sars-CoV-2 ainda não é completamente conhecido e, devido à gravidade da doença que causa, investir em estruturas que não contêm o material viral, por ora, pode ser mais seguro. Em camundongos, a resposta foi positiva, mas, para ir adiante, será preciso levar os testes para um laboratório de nível III, assim como no caso de Minas.
“Vão surgir vacinas muito antes que a nossa, não dá para comparar. Mas a gente vai chegar, a gente tem de chegar”, diz o cientista. “O investimento em uma pesquisa não é só no produto final, é no conhecimento que se desenvolve até chegar a ele.” Cabral destaca que foi graças aos estudos das vacinas para zika e chicungunha, por exemplo, que ele desenvolveu a plataforma da substância em teste agora. “Passei um tempo na Universidade de Oxford, conheço a equipe que desenvolveu a vacina lá. Posso dizer que nosso problema não é intelectual nem de estrutura, porque temos bons laboratórios. O problema é falta de investimento.”
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Palavra de especialista
Eles escolheram fazer a diferença
“Cada vacina gera um tipo de imunidade diferente e, quanto mais vacinas, melhor. No Brasil, temos excelentes imunologistas, com trabalhos consagrados. Eles poderiam estar em qualquer lugar do mundo, mas escolheram ficar aqui para fazer a diferença. Infelizmente, o Brasil não tem tradição de investir em tecnologia de saúde, e essa é nossa desvantagem em relação aos outros países. Precisamos criar tecnologia para não depender mais de laboratórios estrangeiros. O papel do governo brasileiro em investir em pesquisa é fundamental. O que falta no Brasil não são mentes capazes, o que falta é o reconhecimento da importância de se fazer esse investimento.”
Cristina Bonorino, professora titular da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e membro do Comitê Científico da Sociedade Brasileira de Imunologia
Aposta na nanotecnologia
O desenvolvimento de vacinas para zika e chicungunha com a tecnologia de nanopartículas também foi adaptado no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) para a pesquisa de uma imunização contra a covid-19. O grupo de cientistas, coordenados pelo diretor do ICB, Luís Carlos de Souza Ferreira, atualmente tem mais de 10 formulações de diferentes plataformas sendo avaliadas para combater o Sars-CoV-2. Uma das mais promissoras, segundo Marianna Favaro, pesquisadora do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do ICB, é a que utiliza a nanotecnologia. “Estamos bem otimistas porque, nos estudos com zika, que serão publicados em breve, conseguimos uma resposta imunológica muito forte”, conta.
A nanovacina tem uma capacidade curiosa: ela faz com que partículas virais modificadas se automontem, resultando em uma proteína idêntica à que estava no vírus. Dessa forma, embora não tenha capacidade de infectar, a estrutura é reconhecida pelo organismo como se fosse o patógeno, o que gera a resposta imunológica. Essa abordagem começou a ser testada em camundongos. “Esperamos ter um resultado como o que tivemos no caso da zika”, diz Favaro.
A cientista ressalta que a fase pré-clínica exige bastante tempo, necessário não só para garantir a eficácia, mas a segurança da vacina. “Hoje, temos duas corridas por vacinas. Uma emergencial, e é claro que as grandes farmacêuticas estão à frente. Já as outras gerações de vacinas, como as nossas, vão abordar questões que surgirão com o tempo. É possível também que diferentes vacinas sejam usadas com aplicabilidades diferentes, algumas funcionando melhor para idosos e outras para pessoas que já tiveram covid-19”, exemplifica.
Rápidos avanços
A nanotecnologia também é a base de uma vacina que está sendo desenvolvida na Universidade Federal do Paraná. O professor do Departamento de Bioquímica e Biologia da universidade e um dos líderes do estudo, Marcelo Müller dos Santos, conta que, de início, a intenção era chegar a uma prova de conceito, quando se testa uma ideia para verificar se ela tem efeitos práticos. Porém, os resultados com camundongos foram tão promissores que a equipe acredita que, com patrocínio, conseguirá iniciar os testes clínicos no próximo ano.
A técnica consiste na produção de nanoesferas de polímero bacteriano polihidroxibutirato (PHB), macromolécula presente em várias bactérias. O polímero é recoberto com pedaços da proteína spike e da proteína que envelopa o Sars-CoV-2. As nanopartículas levam essas partes virais até o organismo que, então, produz anticorpos contra o micro-organismo. Essa mesma tecnologia já foi usada em testes pré-clínicos de vacinas contra tuberculose e hepatite C.
Na semana passada, a equipe divulgou o resultado da primeira imunização dos animais usando a abordagem. Segundo Müller, duas doses conseguiram produzir grandes quantidades de anticorpos, comparado ao grupo de controle: em média, 54 vezes mais. Embora ainda sejam necessários mais testes e outras etapas, inclusive para verificar se uma forma de administração possível é a intranasal, o cientista está animado. “Inicialmente, nosso projeto terminaria nos testes pré-clínicos, mas os resultados avançaram rápido e, talvez, consigamos, no segundo semestre do ano que vem, ter testes clínicos com esse imunizante.” (PO)