PESQUISA

Cientistas apontam que crianças compreendem linguagem desde o início da vida

Neurocientistas mostram como o cérebro humano está preparado para aprender a identificar palavras desde o início da vida, assim como o poder do ambiente na compreensão da comunicação das crianças. Descobertas podem ajudar a apontar problemas de aprendizado

Vilhena Soares
postado em 01/11/2020 07:00
 (crédito: Valdo Virgo)
(crédito: Valdo Virgo)

Ler e escrever são atividades que apenas os humanos podem realizar. Isso ocorre devido ao trabalho árduo do cérebro e representa um desafio aos especialistas, que tentam entender melhor como a mente humana consegue desenvolver essas habilidades. Em estudos recentes, cientistas observaram que as redes neurais estão preparadas para identificar palavras desde cedo, mesmo antes de as crianças serem apresentadas ao alfabeto. Pesquisadores também constataram que bebês que vivem em ambientes bilíngues conseguem diferenciar idiomas. Essas descobertas podem contribuir para a identificação precoce de problemas de aprendizado comuns durante a infância.

Nas primeiras pesquisas feitas sobre a compreensão da linguagem e o cérebro, neurocientistas descobriram uma região neural responsável pela visualização da escrita. Os especialistas acreditavam que esse circuito, nomeado de Área do Formato Visual de Palavras (VWFA, na sigla em inglês), só conseguia realizar essa função mais tarde na vida, na época em que a criança iniciasse o processo de aprendizagem escolar.

“Alguns pesquisadores levantaram a hipótese de que, na fase anterior à alfabetização, essa área era igual a outras partes do córtex visual, que é a encarregada pela visualização de outros elementos, como rostos ou objetos, e só se tornaria seletiva para letras e palavras conforme as crianças aprendem a ler ou pelo menos à medida em que aprendem a língua”, detalhou ao Correio Zeynep Saygin, principal autor do estudo publicado na revista Scientific Reports e professor-assistente de psicologia na Universidade de Ohio, nos Estados Unidos.

Comparação

O cientista americano e sua equipe resolveram investigar mais a fundo essa questão. Eles avaliaram imagens de ressonância magnética funcional (fMRI, em inglês) do cérebro de 40 crianças, todas com menos de uma semana de vida. Em seguida, os exames foram comparados aos realizados em 40 adultos. Segundo os especialistas, as análises mostraram que, nos recém-nascidos, a VWFA era mais bem desenvolvida do que outras regiões neurais próximas.

“A VWFA é vizinha do córtex visual que reconhece rostos. Era razoável acreditar que não havia nenhuma diferença entre elas, mas vimos no estudo como essa área se mostrou mais evoluída. Isso significa que está pronta para visualizar palavras antes mesmo de sermos expostos a elas”, assinalou Saygin. “E essa é uma descoberta incrivelmente excitante”, completou o cientista.

O estudo também encontrou algumas diferenças na VWFA dos bebês e adultos. “Nossas descobertas sugerem que é provável que haja mais refinamento na VWFA conforme os bebês amadurecem. A experiência com a língua falada e escrita, provavelmente, fortalecerá as conexões neurais nessa região conforme uma pessoa se alfabetiza”, observou o professor da Universidade de Ohio.

Natalia Mota, neurocientista e pesquisadora do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), enfatizou que a pesquisa americana fornece provas de como o cérebro é um sistema “afiado” já no início da vida. “Esses dados mostram que, desde a infância, nós temos conectividades neurais que permitem uma eficaz neuroplasticidade do cérebro, que é a capacidade desse órgão se adaptar a novas informações”, disse a especialista. “Essas observações mostram que nosso cérebro não é uma folha em branco. Ele já tem aparato mental suficiente para trabalhar com o que recebe de novo, nesse caso as palavras, e da melhor forma possível”, acrescentou.

Para a pesquisadora brasileira, o mesmo tipo de análise neurocientífica poderá ser feito, futuramente, utilizando-se outros tipos de comunicação como objeto de pesquisa. “A linguagem é algo que estudamos muito na neurociência por causa do poder dela. Com o seu uso, nós conseguimos construir outros sistemas complexos, como todo um aparato de tecnologias que temos hoje. Seria muito bacana entender melhor como o cérebro responde também a esses recursos mais recentes desenvolvidos pelo homem, como a inteligência artificial, por exemplo”, enfatizou Natalia Mota.

Tratamentos

Os pesquisadores de Ohio acreditam que os resultados do estudo podem ser usados no tratamento de problemas de aprendizagem comuns na infância, como a dislexia, por exemplo. “Saber como essa região neural se apresenta nessa idade nos ajuda a compreender como o cérebro humano desenvolve a habilidade de ler e o que pode dar errado nesse caminho. Essa é uma arma valiosa”, salientou Saygin. “É importante monitorar como essa região do cérebro evolui ao longo da vida para termos ainda mais detalhes sobre esse processo”, reforçou.

Augusto Buchweitz, pesquisador do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer), considerou que os dados vão ajudar a lidar melhor com problemas de aprendizagem que surgem durante a infância. “Se nós já sabemos que a criança deveria ter esse nível de conectividade desde cedo, podemos fazer um monitoramento. Ao constatar problemas nessa região, é possível apontar as chances de um indivíduo sofrer com problemas de leitura mais tarde na vida”, detalhou o especialista.

“Esses dados nos dão um norte maior e mais formas de lidar com esses possíveis problemas. Mas, é importante ressaltar que as crianças podem ser influenciadas também pelo ambiente em que vivem, tanto para o bem quanto para o mal. Esse é um fator que não pode ser descartado”, sublinhou o especialista.

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Pesquisa monitora reações a idiomas

Cientistas espanhóis investigaram o poder do ambiente na compreensão da linguagem das crianças. Os pesquisadores realizaram experimentos com crianças de 14 meses. Parte delas vivia com pessoas que falavam apenas um idioma, enquanto a outra relacionava-se com bilíngues.

No estudo, as crianças monitoradas assistiram a dois tipos de vídeos: em um deles, duas meninas falavam espanhol e trocavam brinquedos, e no segundo, embora a temática fosse a mesma, as crianças falavam idiomas distintos (húngaro e espanhol), o que dificultou a troca dos objetos.

Para analisar o comportamento dos pequenos, os cientistas utilizaram o paradigma de “Violação da Expectativa”. “Ele parte do pressuposto de que os bebês prestam mais atenção em uma cena quando o que acontece nela é inesperado e, portanto, mais difícil de processar”, detalhou Marc Colomer, pesquisador da Universidade Pompeo Fabra, na Espanha, e principal autor do estudo.

Os especialistas observaram que apenas os bebês que cresceram em um ambiente monolíngue reagiram com surpresa quando a menina que falava espanhol não entendeu as frases ditas em húngaro pela sua colega. “Isso sugere que os bebês entendem que a comunicação depende do uso de uma linguagem compartilhada desde os 14 meses de idade, mas isso só ocorre se elas forem expostas a um ambiente com idiomas distintos”, especificou Colomer.

“Temos uma prova de como as habilidades cognitivas relacionadas à linguagem são influenciadas diretamente pelo que as crianças absorvem logo no início da vida”, complementou o autor do estudo.

Influências

Na avaliação de Augusto Buchweitz, esses dados mostram como a compreensão da linguagem é um processo complexo e influenciado por uma série de fatores. “Quando falamos de aprendizagem, precisamos considerar influências da formação neural, da genética, a alimentação que as crianças recebem, o tipo de educação que é fornecido durante a vida. Tudo ao que elas são expostas pode causar impacto, vemos isso em cenários como o desse estudo”, afirmou.

Para o especialista brasileiro, mais análises que busquem decifrar os segredos envolvidos na compreensão da linguagem devem surgir futuramente. “Temos muitos trabalhos internacionais nessa área. No Brasil, ainda são poucos grupos que tratam desse tema. O importante é usar esse material e o que mais surgir, futuramente, para incorporá-los no processo de alfabetização. São ferramentas que podem gerar resultados muito positivos”, estimou.(VS)

Macacos identificam "erros de linguística"

 (crédito: Universidade de Zurique/Divulgação)
crédito: Universidade de Zurique/Divulgação

Para entender uma língua são necessárias habilidades cognitivas, como compreender combinações de palavras e as relações entre elas. Pesquisadores suíços observaram que macacos apresentam esta aptidão, num experimento em que desenvolveram uma gramática vocal para os animais. Após aprender as regras, os primatas conseguiram identificar erros de “linguística”. Segundo os autores do estudo, publicado na última edição da revista Science Advances, os dados mostram que essa habilidade cognitiva existe há pelo menos 40 milhões de anos.

“A linguagem é uma das ferramentas mais poderosas disponíveis para a humanidade. Determinar por que e quando a linguagem evoluiu é fundamental para entender o que significa ser humano”, disse Stuart Watson, pesquisador da Universidade de Zurique, na Suíça, e um dos autores do artigo. No trabalho, os cientistas enfatizaram que compreender as relações entre as palavras em uma frase é uma das principais habilidades cognitivas que sustentam a linguagem, estejam elas próximas ou distantes umas das outras.

“Por exemplo, na frase ‘o cão que mordeu o gato fugiu”, entendemos que foi o cão que fugiu e não o gato. Isso porque processamos a relação entre as palavras de forma correta”, explicou Watson, acrescentando: “A maioria dos animais tem sistemas de comunicação mais simples, que não exige essa habilidade, queríamos saber como eles agiriam quando expostos a esse desafio”.

Para realizar as análises, os pesquisadores inventaram uma gramática artificial, em que as sequências eram formadas pela combinação de diferentes sons em vez de palavras. Os experimentos foram realizados com saguis e chimpanzés. Primeiro, os pesquisadores ensinaram os animais a compreender a gramática artificial durante várias sessões de prática. “Os animais aprenderam que alguns sons eram sempre seguidos por outros ruídos específicos. Por exemplo, o “B” sempre segue o “A” em nossa gramática sonora”, explicou Watson.

Nos experimentos seguintes, os pesquisadores tocaram combinações de sons que violaram as regras aprendidas anteriormente. Ao ouvir os erros, os animais olharam para o alto-falante duas vezes mais do que para combinações familiares de sons.

Para os pesquisadores, o comportamento anormal foi uma sinalização de surpresa nos animais, provocada pela percepção de um “erro gramatical”. “Os resultados mostram que os primatas apresentam essa habilidade importante para a compreensão da linguagem assim como nós”, detalhou o autor do estudo. “Isso indica que ela já existe em nossos ancestrais primatas, pelo menos, há 40 milhões de anos”, observou Watson.

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