Sobrevivência ou fertilidade: cientistas tentam explicar as Vênus do Paleolítico

Cientistas lançam nova explicação para as Vênus do Paleolítico, ligadas à fertilidade. As peças voluptuosas esculpidas na Europa há cerca de 30 mil anos, época de escassez de alimentos, eram trocadas entre mulheres para atrair quilos extras

Paloma Oliveto
postado em 06/12/2020 06:00
 (crédito: Reprodução/Instagram/Naturhistorisches Museum Wien)
(crédito: Reprodução/Instagram/Naturhistorisches Museum Wien)

Algumas das representações artísticas mais antigas já encontradas, o conjunto de esculturas conhecidas como Vênus, em referência à deusa grega, há tempos intriga os acadêmicos. Elas foram esculpidas há cerca de 30 mil anos e, até hoje, descobriram-se 200 peças no continente europeu. Com tamanhos variando entre 6cm e 16cm, as voluptuosas imagens talhadas em pedra, marfim ou argila eram usadas como amuletos e, devido às formas generosas, uma das teorias é a de que representassem a fertilidade.

Porém, um trio de pesquisadores da Universidade do Colorado oferece uma explicação alternativa e inédita. Segundo eles, os totens de seios e quadris fartos significam, na realidade, um ideal no tempo em que foram criados: a obesidade. Se hoje essa é uma condição que se tenta evitar a todo custo devido aos impactos do excesso de gordura na saúde, há 3 mil séculos a sobrevivência dos grupos caçadores e coletores, muitas vezes, era ameaçada por períodos de mudanças climáticas, quando os alimentos se tornavam escassos. As estatuetas seriam, então, como uma idealização estética e, ao mesmo tempo, um amuleto para atrair alguns quilinhos extras.

A Europa começou a ser habitada em um período de aquecimento do planeta, há 48 mil anos. Os humanos do período, conhecidos como aurignacianos, alimentavam-se no inverno de renas, mamutes e cavalos, caçados com lanças com ponta de osso. No verão, comiam peixes, plantas, nozes e frutas. O clima, porém, passou por profundas alterações, ameaçando a sobrevivência. Conforme as temperaturas caíram, as camadas de gelo avançaram, o que exterminou muitos bandos de caçadores-coletores. Outros buscaram refúgio nas florestas ou se mudaram para o sul do continente. Segundo antropólogos, foi um período de grande escassez.

“A falta de alimentos durante as épocas mais difíceis do ano reduziu drasticamente o tamanho da população. Como reflexo da ingestão nutricional, a estatura caiu em média de 7cm a 10cm em 22 mil anos antes da era comum (AEC). Também indicando estresse nutricional, estriações dentárias mudaram de relativamente infrequentes durante o início do Paleolítico Superior (16%) para comparativamente comuns (29%) em 22 mil AEC”, relata os pesquisadores, em um artigo publicado na revista Obesity. Daí a estranheza gerada pelas estátuas, esculpidas em tempos nos quais a fartura do corpo deveria ser raríssima.

“As representações de mulheres obesas ou grávidas, que aparecem na maioria dos livros de história da arte, há muito eram vistas como símbolos de fertilidade ou beleza”, diz o principal autor do estudo, o médico Richard Johnson. “Algumas das primeiras artes do mundo são essas misteriosas estatuetas de mulheres com sobrepeso da época dos caçadores-coletores na Idade do Gelo na Europa, onde você não esperaria ver obesidade de forma alguma. No nosso artigo, mostramos que elas estão relacionadas a momentos de estresse nutricional extremo.”

De mães para filhas

Além de Johnson, participaram do estudo o antropólogo John Fox, da Universidade Norte-Americana de Sharjah, nos Emirados Árabes, e Miguel Lanaspa-Garcia, professor de Medicina Legal na Universidade do Colorado, que mediu as relações entre cintura-quadril e cintura-ombro das estátuas. Com esses cálculos, os pesquisadores demonstraram que as estátuas mais próximas das geleiras — ou seja, nos locais em que a escassez era maior — representavam corpos mais obesos, comparadas às encontradas em regiões mais longes.

Por isso, os cientistas acreditam que os totens eram um tipo de tipo físico idealizado — assim como hoje, quando a indústria da moda é abastecida por imagens de corpos irreais. “Propomos que as estátuas transmitam ideais de uma forma corporal para mulheres jovens, especialmente aquelas que viviam nas proximidades das geleiras”, diz Johnson, que, além de médico, tem graduação em antropologia.”

“A obesidade passou a ser uma condição desejada. Em tempos de escassez, uma mulher obesa poderia carregar uma criança durante a gravidez melhor do que uma desnutrida”, destaca John Fox. “Portanto, as estatuetas podem ter sido imbuídas de um significado espiritual — um fetiche ou amuleto mágico que poderia proteger uma mulher durante a gravidez, o parto e a amamentação.” Muitos dos totens estão bastante gastos, indicando que eram heranças passadas de mãe para filha, por muitas gerações. As mulheres que estavam entrando na puberdade ou nos primeiros estágios da gravidez provavelmente ganhavam as esculturas de presente, na esperança de ganhar peso para garantir um parto bem-sucedido.

O aumento da gordura forneceria uma fonte de energia durante a gestação. Promover a obesidade, portanto, garantiria que os bandos sobrevivessem por mais uma geração nessas condições climáticas mais precárias. Segundo Richard Johnson, até que o bebê já pudesse ser desmamado, uma mulher da época teria de enfrentar dois invernos árticos. Por isso, hipotetizam os autores, as estátuas representam mulheres, nunca homens.

“As mulheres requerem mais gordura do que os homens, com aproximadamente 17% de gordura corporal para sustentar a menstruação e 22% de gordura corporal para sustentar a gestação ideal”, explica Jonhson. Na ausência de comida, uma mulher de tamanho médio necessitaria de 16kg de gordura para fornecer as calorias necessárias para carregar um bebê ao nascer e amamentá-lo por mais de três meses. “Os baixos estoques de gordura não só podem resultar em amenorreia (ausência de menstruação), mas também podem levar à morte neonatal se a mãe perder a capacidade de amamentar.”

Os autores reconhecem algumas limitações do estudo — as estatuetas, exibidas em diversos museus do mundo, foram medidas por meio de fotografias, por exemplo. Mas acreditam que há evidências para dar suporte à tese já levantada anteriormente de que as Vênus do Paleolítico simbolizam a fertilidade, adicionando a essa interpretação a busca pela sobrevivência da espécie humana.

PARA SABER MAIS

Religião ou sensualidade?

A primeira representação esculpida de uma mulher no Paleolítico foi encontrada na Dordonha, na França, em 1864, pelo Marquês de Vibraye. Outras descobertas iniciais incluem a Vênus de Brassempouy, escavada no sudoeste da França em 1894, e a famosa Vênus de Willendorf, em 1908, no vale do Danúbio, na Áustria.

A maioria das estatuetas de Vênus compartilha características semelhantes: normalmente em forma de losango, com uma barriga proeminente e cabeça mais afilada, elas geralmente não têm braços ou pés, ou qualquer detalhe facial. Abdômen, quadris, seios, coxas e órgão genital costumam ser deliberadamente exagerados.

Alguns paleoantropólogos teorizam que essas figuras eram, provavelmente, símbolos de fertilidade ou alguma forma de ícones religiosos primitivos. No entanto, não existe um consenso claro entre os estudiosos quanto ao seu significado cultural. Por exemplo, Grahame Clark, um dos pioneiros no estudo do Paleolítico, afirma que seu significado é “inegavelmente sensual”, enquanto o aclamado arqueólogo francês Rene Nougier, nega isso enfaticamente. O especialista em arte pré-histórica Walter Torbrügge afirma que a estatueta é uma “invocação da fertilidade”, enquanto outros defendem que se trata de um símbolo religioso. 

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