A covid-19 pode ser considerada a grande protagonista de 2020. O vírus Sars-CoV-2, agente infeccioso dessa nova enfermidade, espalhou-se com extrema rapidez pelo mundo e forçou as pessoas a ficarem reclusas em casa, temendo serem acometidas por uma doença sem tratamento. Essa situação complexa exigiu que cientistas corressem contra o tempo para frear o coronavírus. E, em menos de um ano, eles conseguiram desenvolver a melhor alternativa de contenção: as vacinas. Essa façanha foi eleita a descoberta do ano pela revista americana Science. O periódico mais reconhecido na área científica destaca a velocidade em que os imunizantes foram criados, graças a investimento financeiro massivo e uso de novas tecnologias. Também ressalta a desinformação como um dos maiores problemas enfrentados durante a pandemia.
Foi no dia 31 de dezembro de 2019 que médicos chineses notificaram à Organização Mundial da Saúde (OMS) os casos de uma misteriosa pneumonia na cidade de Wuhan. A partir daí, vimos a evolução da covid-19 até ela alcançar o patamar de pandemia. Ao mesmo tempo, cientistas de diversas nações deram início à busca por uma vacina capaz de deter o coronavírus. Em abril, foi anunciada a primeira notícia positiva relacionada ao desenvolvimento de um imunizante: a empresa chinesa Sinovac Biotech divulgou resultados positivos de uma vacina testada em macacos. “O grupo usava uma tecnologia antiga e, segundo alguns, antiquada — o vírus inteiro e inativado —, mas com fortes provas. Seguiu-se uma enxurrada de outros sucessos em testes feitos com primatas não humanos”, relata Jon Cohen, repórter da Science e autor do artigo que elege as vacinas contra covid-19 como descoberta do ano.
Para o periódico americano, outro mês marcante foi julho, quando empresas e universidades anunciaram a realização de testes em um número grande de voluntários de países mais atingidos pela pandemia, incluindo o Brasil. “Nunca antes os pesquisadores desenvolveram tão rapidamente tantas vacinas experimentais contra o mesmo inimigo. Nunca antes tantos concorrentes colaboraram de forma tão aberta e frequente. Nunca antes tantos candidatos avançaram para ensaios de eficácia em grande escala”, ressalta Cohen. “E nunca antes governos, indústria, academia e organizações sem fins lucrativos gastaram tanto dinheiro, músculos e inteligência contra a mesma doença infecciosa em tão curto prazo.”
Na busca por um imunizante para a covid-19, a Science também destaca o uso de tecnologias totalmente novas, como a de RNA mensageiro. Nessa técnica, cientistas criam uma parte genética do vírus em laboratório para ser usada no imunizante. É essa pequena partícula a responsável por provocar a produção de anticorpos protetores no organismo humano. As empresas americanas Moderna e Pfizer foram as que apostaram nessa abordagem. Também foram as primeiras a apresentar os resultados da fase final de testes clínicos, com dados mais positivos do que o esperado. “Essas vacinas de mRNA se tornaram as primeiras a cruzar a linha de chegada, cada uma reportando eficácia de aproximadamente 95%. Isso é mais alto do que qualquer um ousou esperar. As vacinas contra influenza, em um bom ano, atingem 60%”, ressalta o periódico.
Para a Science, uma das grandes contribuições da corrida de vacinas será a utilização dessa nova tecnologia no desenvolvimento de imunizantes contra outras enfermidades. Porém, a revista ressalta que muitos desafios ainda precisam ser superados, como a falta de doses para os países mais pobres e a ausência de dados mais detalhados da última fase de pesquisa com os imunizantes. “Os resultados dos ensaios clínicos relatados, até agora, vieram principalmente de comunicados de imprensa das empresas, não das apresentações completas de dados. As doses de vacina serão escassas até para os países mais ricos até pelo menos a primavera, e os pobres do mundo certamente esperarão mais”, afirma Cohen.
Outros obstáculos a serem vencidos, segundo a equipe da revista científica, são as campanhas de fake news e a necessidade de se manter alerta quanto a possíveis mutações no coronavírus, o que poderá exigir adaptações nos imunizantes. Mesmo assim, as conquistas obtidas, em 2020, são a melhor esperança para mudar o cenário pandêmico atual, avalia o grupo. “Uma confluência de forças impulsionou a ciência do zero a uma vacina em velocidade revolucionária (...) Sabemos que o normal não vai voltar em pouco tempo. Mas, nos próximos meses, conforme for ocorrendo o lançamento das vacinas, uma imagem mais completa de sua promessa vai emergir. Poderemos, finalmente, ser capazes de responder à pergunta: Quando isso vai acabar?”, aposta Cohen.
Esforço coletivo
Ana Karolina Barreto Marinho, coordenadora do Departamento Científico de Imunização da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), avalia que o destaque dado às vacinas pela revista americana é um reflexo do esforço coletivo de diversos setores da sociedade. “Diante do estrago da pandemia, foi criada uma imensa força-tarefa, pessoas de diversas áreas se concentraram no mesmo objetivo: combater essa enfermidade da melhor forma possível. Antes, tínhamos pesquisadores estudando as mesmas doenças, mas de forma descoordenada. Nesse caso, todos se uniram e trocaram informações importantes, que foram essenciais para esse resultado rápido”, justifica. “É claro que isso também só foi possível graças ao massivo investimento financeiro e às novas tecnologias. Sem eles, os resultados demorariam bem mais.”
A especialista brasileira também acredita que os esforços de 2020, na área de imunização contra o Sars-CoV-2, poderão gerar benefícios para o combate a outras enfermidades. “Esse é um ponto crítico para a área médica. Acreditamos que, da mesma forma que estamos orientando as pessoas sobre a importância da vacina da covid-19, o efeito positivo se estenderá a campanhas de vacinação de outras enfermidades, principalmente no Brasil, em que as taxas de imunização baixaram bastante. Temos confiança de que este é o momento para trabalhar no combate também a outras doenças, e queremos aproveitar.”
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Relações conturbadas
Para a Science, o fluxo alto de dados científicos produzidos em 2020 surgiu acompanhado de uma onda de desinformação, o que complicou a relação entre cientistas e autoridades mundiais. “A disseminação deliberada de desinformação sobre o vírus — muitas vezes, por funcionários públicos e médicos com motivação política — significou que os cientistas, não o vírus, tornaram-se inimigos”, escreveu, em um artigo para a revista americana, Kai Kupferschmidt, também repórter da publicação. O jornalista defende que a experiência vivida neste ano, com informações científicas errôneas propagadas massivamente, precisa ser encarada como um alerta pelos profissionais da área. “O resultado não pode ser apenas mais pesquisas sobre patógenos desconhecidos à espreita na natureza. Tem que ser um esforço para reviver e fortalecer os laços entre a ciência e o resto da sociedade”, justificou.
Outros destaques da ciência
A revista Science deu destaque a outras conquistas científicas de 2020, definidas como “vice-descobertas” do ano. O periódico elegeu pesquisas em diferentes nichos, como na arqueologia, com a descoberta da arte figurativa mais antiga do mundo, e também na genética, com o tratamento de doenças sanguíneas por meio da técnica de edição de DNA CRISPR-Cas9. Essa tecnologia também foi escolhida como ganhadora do prêmio Nobel de Química em outubro.
Por meio da edição de genes, pesquisadores americanos conseguiram tratar duas enfermidades do sangue, a talassemia beta e a doença falciforme. Em ambas as complicações, ocorrem problemas na produção de hemoglobina no sangue, provocando danos à saúde, como a anemia. Os especialistas coletaram células-tronco sanguíneas defeituosas de pacientes e corrigiram as falhas por meio da CRISPR-Cas9, que consegue cortar genes específicos de uma cadeia de DNA. Em seguida, os indivíduos receberam células modificadas por meio de quimioterapia. Com o tratamento, foi possível “limpar” o sangue doente, mesmo que apenas temporariamente. Os experimentos foram feitos por pesquisadores das empresas CRISPR Therapeutics e Vertex Pharmaceuticals.
A Science também ressaltou a descoberta de desenhos pré-históricos com mais de 40 mil anos em uma caverna na ilha de Sulawesi, na Indonésia. Foram encontradas imagens de cabeças de porcos e búfalos selvagens, além de símbolos que podem representar pensamentos religiosos antigos, segundo os cientistas. O mesmo tipo de figura só havia sido visto antes na Europa. A descoberta é de autoria de pesquisadores da Universidade de Griffith, na Austrália, e foi publicada na revista especializada Nature, no início do ano.
Também entraram na seleção da Science uma pesquisa que mostrou uma capacidade cognitiva excepcional em pássaros, outra sobre a origem de explosões de rajadas rápidas de rádio (um tipo de explosão no espaço) e um estudo que relata a presença crescente de vozes negras na comunidade científica.