RENOVAÇÃO

Soluções sustentáveis: pode sair do lixo a aposta para melhores estradas no Brasil

É do lixo que sai a aposta de estudiosos para a construção de estradas mais resistentes e com menos potencial de danos ao meio ambiente, mostra o Correio no terceiro e último dia da série especial sobre pavimentação das rodovias

Vilhena Soares
postado em 27/12/2020 06:00 / atualizado em 07/01/2021 15:47
 (crédito: AFP PHOTO/Money SHARMA)
(crédito: AFP PHOTO/Money SHARMA)

Pneus, sobras de materiais de construção e garrafas plásticas são descartados, em excesso, na natureza, onde demoram décadas ou, muitas vezes, séculos para se decompor. Com o objetivo de evitar os potenciais danos ambientais gerados pelo acúmulo desses elementos, pesquisadores têm buscado maneiras de usá-los na pavimentação de estradas. Cientistas internacionais e brasileiros trabalham no desenvolvimento de asfaltos mais resistentes ao desgaste gerado pelo tempo, investindo em matérias-primas retiradas do lixo. Para muitos estudiosos, essa estratégia deve ser explorada ainda mais nos próximos anos, devido à necessidade constante — e urgente — de proteção do planeta.

Os pneus velhos foram os primeiros a serem explorados por especialistas no desenvolvimento de asfalto. Como a borracha é muito resistente, quando eles não servem mais para serem usados — e ficam descartados por muito tempo — geram riscos de incêndio e tornam-se criadouros de roedores e mosquitos. “Essa durabilidade pode tornar os pneus vantajosos para a produção de asfalto-borracha, uma mistura de pneus moídos e betume, que é usada para reparar estradas”, explicou ao Correio Christopher William, pesquisador do departamento de transporte da Universidade de Iowa, nos EUA.

No entanto, o aproveitamento desse rejeito para a construição de estradas esbarra em dois desafios que limitam uma utilização mais ampla: a alta viscosidade do material e a tendência a se separar em camadas de borracha e betume. Para contornar esses obstáculos, William e sua equipe estudaram a estabilidade do asfalto borracha com a adição de diferentes quantidades de alguns polímeros (elementos plásticos) — como cis-isopreno, transisopreno, polibutadieno ou poliisobutileno.

O grupo de pesquisadores descobriu que, quando incorporadas ao betume, as misturas de borracha de pneu moída com transisopreno ou polibutadieno apresentaram o melhor desempenho. “Essas fórmulas reduziram a densidade da borracha do pneu moída, que tornou-se semelhante ao asfalto, sem sofrer sedimentação, ou seja, a separação em camadas. Os polímeros também ajudaram a reduzir a viscosidade do asfalto borracha, e isso torna o material mais fácil de se trabalhar”, explicou o líder da pesquisa. De acordo com especialistas, os polímeros são baratos, o que facilita ainda mais a incorporação da tecnologia por empresas especializadas.

Coordenadora do Centro de Pesquisas Rodoviárias (CPR) CCR NovaDutra, em São Paulo, Valéria Faria, que trabalha com o desenvolvimento de novos pavimentos, destacou que o uso de polímeros tem sido bastante explorado na área industrial. “A utilização de pneus velhos já é feita por muitos cientistas e empresas. Mas, recentemente, esses derivados plásticos têm refinado ainda mais esse tipo de asfalto. É algo que vem sendo estudado bastante por especialistas de diversos países”, disse a especialista, acrescentando: “Além de reduzir a quantidade de lixo acumulado, algo positivo para o meio ambiente, o objetivo dessas pesquisas é aumentar a durabilidade das estradas e o conforto delas. Quando essas fórmulas dão certo, colhemos diversos benefícios.”.

Segundo Valéria Faria, o CPR é um dos centros que obtiveram sucesso com o aproveitamento de pneus descartados no desenvolvimento de novos asfaltos, além de outras tecnologias, como o reúso de pavimentos gastos. A especialista informou que o grupo investe, atualmente, em outros materiais recolhidos no lixo para criar pavimentos, como o plástico de garrafas e de sacolas descartáveis.

“No Brasil, esse tipo de pesquisa ainda está a nível laboratorial, mas temos muitos pesquisadores interessados nessa área e eles têm se dedicado a entender melhor e aprimorar esse tipo de tecnologia”, disse, apostando em resultados sólidos, em breve. “Nos Estados Unidos, na Europa e na África do Sul, as pesquisas realizadas nesse setor estão mais evoluídas, mas não ficamos tão para trás. O nosso centro é importante por isso: mantemos uma porta aberta para projetos de fora e estamos conectados com o que é discutido em eventos e congressos. Estamos de olho nas tecnologias que podemos aproveitar.”

Asfalto de entulho

Outra fonte de reaproveitamento, que começa a ser explorada, está nos rejeitos de construção, muitas vezes, de difícil descarte. Um grupo de estudiosos australianos decidiu usar as sobras de materiais usados em obras como matéria-prima para desenvolver um asfalto mais resistente. “Edificações, reformas e demolições são responsáveis por cerca de metade dos resíduos produzidos anualmente em todo o mundo”, observou Mohammad Boroujeni, pesquisador da Universidade de Melbourne e um dos autores da pesquisa.

Boroujeni e sua equipe testaram uma série de misturas de materiais de construções com pneus velhos, até chegar à fórmula que consideram ideal: 99,5% dos rejeitos de obras e 0,5% de borracha moída fina (proveniente de pneus usados). Essa receita, explicam os pesquisadores, gerou um pavimento com características importantíssimas para a construção de estradas. “É uma alternativa 100% reciclada, que oferece uma nova maneira de reutilizar pneus e resíduos de construção, ao mesmo tempo em que preenche critérios-chave para um asfalto eficaz, como flexibilidade e resistência (principalmente ao ácido e a água), o que diminui as chances de surgirem rachaduras e deformações nas estradas”, explicou Boroujeni.

Segundo Liedi Bernucci, coordenadora do Laboratório de Tecnologia de Pavimentação (LTP) da Universidade de São Paulo (USP), o uso de resíduos de construção é algo promissor, principalmente diante das tecnologias que surgiram nos últimos anos. “No nosso laboratório, trabalhamos há 20 anos com esse tema. Usamos sobras de demolição para criar pavimentos ecológicos e tivemos sucesso. Nosso produto foi aplicado dentro do campus da universidade e, até hoje, mantém-se bem conservado. Atualmente, temos outras ferramentas que nos permitem lidar com um número ainda maior de materiais descartados, e também trazem mais vantagens no uso desses novos pavimentos”, contou a especialista.

Ela lamentou que essa alternativa tenha mais espaço, até o momento, no exterior. “Para se ter uma ideia, só em 2019, 82,2 milhões de toneladas de revestimento asfáltico velhos foram reutilizados nos Estados Unidos. No Brasil, não deram muita atenção a esse setor no passado, infelizmente”, comparou. “Atualmente, esse é um tema que está na mesa de discussão de todos os países desenvolvidos, pois eles estão preocupados com esse novo cenário de problemas relacionados ao meio ambiente”, afirmou.

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