Durante 120 anos, uma verdade perpetuou-se sem controvérsias: o americano Thomas Alva Edison (1847-1931) foi a primeira pessoa a gravar a voz humana.
O inventor, entre outras coisas, da lâmpada e da câmera cinematográfica, havia conseguido tal feito em 1888 por meio de outra de suas criações, o fonógrafo de cilindro de cera, e diante de testemunhas, incluindo frequentadores de um concerto que gravou no Handel Festival em Crystal Palace, em Londres, no Reino Unido.
No entanto, mais de um século depois, dois membros da First Sounds Initiative — um coletivo que "se esforça para tornar as primeiras gravações sonoras da humanidade disponíveis para todas as pessoas de todos os tempos" — começaram a suspeitar que havia uma realidade alternativa.
Suas descobertas surpreendentes levaram a história a ser reescrita em 2008... duas vezes.
A descoberta
Quando o americano Patrick Feaster, um historiador de áudio, começou a ler sobre um pioneiro do som antes de Edison, um bibliotecário francês chamado Édouard-Léon Scott de Martinville, ele não ficou muito entusiasmado; sua invenção parecia nada mais que um precursor técnico do fonógrafo que era usado apenas para experimentos científicos.
Mas sua opinião mudou à medida que pesquisava mais, especialmente depois de ver algumas fotocópias ruins da patente de um dispositivo chamado fonoautógrafo, que o francês havia registrado em 25 de março de 1857.
Pouco depois, em uma visita a Paris, seu colega David Giovannoni consultou os documentos de Scott de Martinville pessoalmente no Escritório de Patentes da França e encontrou dois fononautogramas... nada menos que gravações de som datadas de 1860, 28 anos antes de Edison.
Eram folhas de papel cobertas de fuligem, marcadas pela vibração de um fio de pêlo de javali causada por sons. Graças ao fato de terem sido submersos em um fixador, aqueles vestígios de algo que aconteceu décadas atrás permaneceram perfeitamente preservados.
O desafio era traduzir essas marcas em ondas sonoras. Giovannoni enviou os documentos a Feaster, nos Estados Unidos, que, com a ajuda de seu computador, se lançou na empreitada assim que os recebeu.
"Acabei ficando acordado a noite toda", diz Feaster à BBC.
Feaster teve que ajustar manualmente as ondas sonoras usando como referência as vibrações inscritas por um diapasão que Scott havia gravado nos mesmos documentos justamente para esse fim.
"Quando o sol nasceu, finalmente consegui ouvir a gravação. Era (a canção folclórica francesa) Au Clair de la Lune. Sentado ali, percebi que era a primeira pessoa a ouvir alguém cantar antes do início da Guerra Civil americana: fiquei arrepiado."
Não só isso: Feaster também foi a primeira pessoa a ouvir essa gravação.
Édouard-Léon Scott de Martinville nunca a reproduziu; na verdade, ele nem tentou.
Outro sonho
O bibliotecário Scott era editor de manuscritos e tipógrafo em uma editora de livros científicos em Paris. Como um bom homem de letras, seu sonho tinha sido outro.
E se um escritor, ele se perguntava, pudesse "ditar um sonho fugaz no meio da noite e ao acordar descobrir não apenas que ele foi escrito, mas se alegrar por estar livre da caneta, aquele instrumento com o qual ele luta e que esmorece a expressão?"
Basicamente, o que ele queria criar era um dispositivo que cumprisse função semelhante aos modernos programas de reconhecimento automático de fala, uma ferramenta capaz de processar o sinal de voz emitido pelo ser humano e convertê-lo em símbolos de fácil leitura.
"A ideia imprudente de fotografar a palavra" lhe ocorreu um dia, em meados do século 19, após ler um texto sobre fisiologia humana: se a fotografia podia capturar imagens fugazes com lentes que imitavam o olho, não poderia uma réplica de um ouvido captar as palavras faladas?
Sua inspiração deu origem ao fonoautógrafo, um aparelho que podia 'transcrever' o som, e ele voltou a sonhar que a caligrafia escrita em fuligem, que considerava taquigrafia natural, um dia seria lida com a mesma facilidade com que os símbolos que havíamos inventado, como as letras.
Por enquanto, ele havia logrado em fazer do som, sempre invisível e fugaz, algo visível e permanente.
Depois que seu fonoautógrafo chamou a atenção da SEIN (Société d'encouragement pour l'industrie nationale), uma associação de especialistas que avalia novas tecnologias e suas possíveis contribuições para a indústria francesa, Scott recebeu apoio para aprimorar sua invenção.
Posteriormente, associou-se a Rudolph Koenig, fabricante de instrumentos científicos de precisão, para comercializá-lo, apresentando-o no catálogo como um dispositivo capaz de preencher uma lacuna na acústica, que, segundo ele, "está um século atrás de outras ciências experimentais, faltando instrumentos de observação, medição e análise, como a astronomia antes da invenção do telescópio."
O fonoautógrafo era "um meio de dissecar fenômenos sonoros, um microscópio que não apenas mostra os sons, mas também preserva sua impressão".
Mostrar sons, em vez de reproduzi-los, sempre foi sua intenção e, com isso em mente, Scott fez várias dezenas de gravações de fragmentos de música, poesia e teatro em vários idiomas que ficaram quase esquecidas em várias instituições francesas de renome.
Até que em 2008, com a tecnologia de hoje, uma dessas gravações veio à vida como "um fantasma atravessando uma cortina de tempo", conta Giovannoni à BBC.
Apresentação ao público
A gravação de Au Clair De La Lune na voz de uma garota que Giovannoni e Feaster pensaram ser filha de Scott foi lançada ao público e logo viralizou.
Mas nem todas as reações foram de admiração.
Charlotte Green, jornalista da BBC Radio 4, teve um ataque de riso incontrolável quando a ouviu no noticiário que apresentava ao vivo, um clipe que também viralizou.
Mais tarde, Green disse que parecia "uma abelha presa em uma garrafa".
Alguns ficaram comovidos com a gravação, outros a acharam assustadora.
Em todo caso, a história foi reescrita: talvez Edison tenha sido o primeiro a reproduzir a voz humana, mas agora sabíamos que Edouard-Léon Scott de Martinville foi a primeira pessoa a gravá-la.
Só que...
Encore
Seis meses após o lançamento do que agora era reconhecido como a primeira gravação de voz do mundo, Giovannoni e Feaster estavam trabalhando em outro áudio quando perceberam que haviam cometido um erro tremendo: eles tocaram Au Clair De La Lune com o dobro da velocidade.
Quando corrigido, a voz não era a de uma menina, mas a do próprio Scott de Martinville.
A história teve que ser reescrita mais uma vez!
Scott morreu de aneurisma no anonimato pouco depois da invenção do fonógrafo de Edison.
Ele foi enterrado em uma sepultura sem nome, pois sua família não tinha dinheiro para uma lápide. Em seu testamento, Scott pediu a seus filhos que se certificassem de que ele e sua invenção não fossem esquecidos.
Em 2015, a Unesco, o braço da ONU para educação, inscreveu em seu Registro da Memória do Mundo "As primeiras gravações da humanidade de sua própria voz: os fonautogramas de Édouard-Léon Scott de Martinville (c.1853-1860)".
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