Ciência

Mudança climática também era um desafio para os povos antigos

Cientistas destrincham estratégias desenvolvidas por populações do passado para enfrentar adversidades como queda brusca de temperatura e aridificação. A aposta é de que as medidas da antiguidade nos inspirem a solucionar problemas ambientais futuros

Vilhena Soares
postado em 04/04/2021 06:00
 (crédito: Artur Rodziewicz/Divulgação)
(crédito: Artur Rodziewicz/Divulgação)

Com a aceleração das mudanças climáticas, a sociedade tem enfrentado adversidades ambientais severas, que devem ser ainda mais frequentes nos próximos anos. Populações antigas viveram desafios semelhantes, mas pouco se sabe sobre como lidaram com essa situação. Pesquisadores internacionais resolveram investigar esse capítulo da história humana e descobriram que os antigos demonstravam alto nível de resiliência ao adotar estratégias eficazes, como o plantio de diferentes alimentos e alterações no comércio. Cientistas acreditam que esses dados podem ajudar a melhorar o gerenciamento de desafios ambientais futuros e reduzir a intensa destruição do meio ambiente em longo prazo.

Paleontólogos e historiadores estudam mudanças climáticas do passado constantemente, mas os casos em que as sociedades entraram em colapso devido a fenômenos desse tipo geralmente são os que mais ganham destaque nas pesquisas. Especialistas internacionais resolveram realizar uma análise a partir de uma perspectiva diferente: tendo como principal foco grupos que conseguiram sobreviver a obstáculos gerados pelas alterações ambientais.

“Grande parte das investigações dessa área está concentrada apenas nos desastres. Nosso objetivo é mudar um pouco esse cenário e também encorajar outros pesquisadores a fazer o mesmo, que é decifrar as estratégias que permitiram que as populações do passado sobrevivessem às mudanças do clima”, diz Dagomar Degroot, professor-associado de história ambiental da Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, e principal autor do estudo, publicado na revista Nature.

Degroot e sua equipe montaram um questionário com indagações construídas a partir de disciplinas ligadas à temática, como arqueologia, geografia, história e paleoclimatologia. As perguntas serviram como um roteiro investigativo para o grupo, que revisou estudos arqueológicos relacionados ao período da Pequena Idade do Gelo, entre os anos de 1300 até 1850, em todo o Hemisfério Norte.

Embora tenham ocorrido diversas dificuldades durante esse período, desencadeadas pelas baixas temperaturas constantes, com cerca de 4°C durante o verão, as populações se adaptaram bem. Segundo os cientistas, foram usadas estratégias simples, mas eficazes. Comunidades que viviam na região do Mediterrâneo Oriental, que abrange a Grécia e o Egito, são um dos exemplos. “Observamos que muitas construções da região utilizavam sedimentos de lagos e espeleotemas (formações rochosas retiradas de dentro de cavernas). São materiais usados como substitutos de produtos que não estavam disponíveis por causa do inverno, que impediu o florescimento de muitas árvores usadas nessa tarefa”, detalham os autores do artigo.

Outro ponto de destaque é relacionado à agricultura. Segundo o grupo de estudiosos, o aumento de chuvas em algumas regiões fez com que o cultivo de alimentos fosse prejudicado, o que motivou um investimento na produção de cereais e atividades pastorais. Grupos da elite investiram nesses nichos e, com o resultado das vendas, financiaram a construção de represas e de outras infraestruturas que permitiram a gestão do uso da água de forma mais eficaz.

“As histórias de sucesso demonstram que as condições climáticas adversas não levam necessariamente ao colapso ou a dificuldades sociais. Essa sociedade bem organizada e cheia de recursos foi capaz de se adaptar e explorar as novas oportunidades”, afirma, em comunicado, Adam Izdebski, do Instituto Max Planck de Ciências da História Humana, na Alemanha, e um dos autores do estudo.

Olhar multidisciplinar

Jefferson Cardia Simões, professor e pesquisador do Centro Polar e Climático (CPC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destaca que o estudo mostra dados interessantes, coletados por meio de uma estratégia inteligente. “Essa pesquisa reforça algo que temos visto na área. Não basta estudar apenas as variações do meio ambiente para entender períodos da história, outros fatores são importantes, como as características de cada local, o desenvolvimento socioeconômico e as diferentes culturas dos grupos analisados”, justifica. “Por isso, é importante que essa investigação multidisciplinar ocorra em sintonia com as pesquisas arqueológicas, que compõem o nosso arquivo natural.”

O brasileiro lembra que, antes do século 19, os especialistas acreditavam que tudo estava ligado ao meio ambiente. “Pouco depois, muitos passaram a dizer que o clima não afetava em quase nada, e, mais recentemente, a partir do século 20, teve início a defesa desse tipo de análise mais completa, que parece ser a mais adequada até agora. É ela que consegue refletir de forma mais fiel o passado”, afirma.

Os autores do estudo enfatizam que as adaptações bem-sucedidas dos grupos antigos se relacionaram a mudanças no clima com menor magnitude do que as atuais. “É claro que, com o aumento da temperatura que enfrentamos no século 21, as medidas de adaptação devem ser diferentes e muito mais ambiciosas, o que reforça a necessidade de reduzir as emissões de CO2 o mais rápido possível”, frisa Izdebski. “Com essa estrutura de pesquisa, esperamos ajudar outros pesquisadores a encontrarem conexões mais diversas entre o clima e a sociedade, que nos levem a uma compreensão mais realista do passado e um melhor guia para o futuro”, completa Degroot.

Roberto Ventura Santos, do Instituto de Geociências da Universidade de Brasília (UnB), avalia que o estudo esmiúça reações das comunidades a um fenômeno que a humanidade lidará para sempre. “É uma pesquisa que mostra uma visão muito antropológica sobre mudanças que podem ocorrer a qualquer momento. A diferença é que, no passado, elas não foram desencadeadas pela ação negativa dos humanos à natureza, que é o que ocorre hoje e deixa a nossa situação bem mais difícil”, compara.


"Com essa estrutura de pesquisa, esperamos ajudar outros pesquisadores a encontrarem conexões mais diversas entre o clima e a sociedade, que nos levem a uma compreensão mais realista do passado e um melhor guia para o futuro”

Dagomar Degroot, professor-associado de história ambiental da Universidade de Georgetown

 

 

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Da seca à colheita diversificada

 (crédito: Universidade de Washington/Divulgação)
crédito: Universidade de Washington/Divulgação

Outra pesquisa feita por cientistas americanos traz mais indícios da alta resiliência de comunidades antigas diante das mudanças climáticas. Cientistas da Universidade de Washington, em parceria com especialistas da Academia Chinesa de Ciências, encontraram dados que comprovam que a aridificação nas planícies centrais da China, fenômeno ocorrido durante o início da Idade do Bronze, foi menos prejudicial à população do que se acreditava.

“Na China, especialmente, tem havido uma visão relativamente simplista dos efeitos do clima. As pessoas foram capazes de superar as adversidades climáticas porque estavam dispostas a mudar”, afirma, em comunicado, Tristram R. Kidder, um dos autores do estudo e pesquisador da Universidade de Washington.

A equipe combinou informações sobre clima, arqueologia e vegetação para chegar às conclusões. Na primeira parte da pesquisa, analisaram dados de sedimentos retirados de um lago localizado na província de Henan, na China, e que foram usados para decifrar as condições climáticas históricas. Descobriu-se que, há cerca de 9 mil a 4 mil anos, um ambiente com clima quente e úmido mudou de forma mais drástica do que se acreditava. Transformou-se em um local de temperaturas mais baixas e secas durante a transição do Neolítico para a Idade do Bronze (cerca de 4 mil a 3,7 mil anos atrás).

A partir daí, os pesquisadores usaram a técnica de datação por radiocarbono e outros dados arqueológicos para determinar o que as pessoas estavam plantando e comendo durante esse período. Diante da limitação de recursos causada pelos períodos de aridificação, os povos antigos ampliaram o número de plantas que cultivavam para se alimentar. “Eles adotaram uma nova diversidade na agricultura, incluindo milho, trigo e soja”, contam os autores do trabalho, que também tiveram o apoio de cientistas israelenses.

Novas técnicas

O período também foi marcado por inovações tecnológicas, algumas delas usadas para o uso mais inteligente da água na colheita, além do desenvolvimento de novas ferramentas de metal. “A mudança climática nem sempre é sinônimo de colapso — e esse é um ponto importante tanto no contexto pré-histórico quanto no moderno”, frisa Michael Storozum, coautor do estudo.

O também pesquisador da Universidade Hebraica de Jerusalém aposta nos trabalhos multidisciplinares para avançar nessa área. “À medida que mais cientistas ambientais e arqueólogos trabalham juntos, nossa compreensão do que torna uma sociedade resiliente às mudanças climáticas em tempos pré-históricos e históricos deve crescer também. Precisamos pensar cuidadosamente sobre como entendemos a capacidade das pessoas de mudarem seu mundo.”

Com riqueza de detalhes

“Na área científica, sempre falamos sobre as mudanças ambientais que ocorreram em épocas mais antigas, e esse fenômeno é usado constantemente para defender uma série de suposições, como o fim de muitos grupos que não teriam sobrevivido por migrar de uma área para outra em busca de alimentos, como os incas. Esse olhar mais interdisciplinar nos ajuda a ver essa questão de forma mais complexa, ao avaliar períodos em que os obstáculos que surgiram foram superados. É algo que nós até esperávamos. Por sabermos que o homem pode, sim, se adaptar, viajamos constantemente por áreas de climas distintos até hoje. Mas com essas análises, observamos isso com mais riqueza de detalhes. Estudos que nos ajudam a entender melhor essa resposta da sociedade a mudanças ambientais nos auxiliam também a compreender melhor o presente e a pensar nas melhores estratégias que podem ser usadas para lidar com possíveis eventos climáticos no futuro.”

Tercio Ambrizzi, professor do Departamento de Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP)

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