Ciência e Saúde

Operadora é multada em R$ 468 mil por forçar médicos a receitar 'tratamento precoce' contra covid-19

Decisão foi tomada após relatos de um médico que prestou serviços à operadora de saúde e de uma paciente, que disse ter sido orientada a tomar hidroxicloroquina mesmo sem ter um diagnóstico de covid-19

BBC
Vinícius Lemos - Da BBC News Brasil em São Paulo
postado em 27/04/2021 19:51
Uma das maiores operadoras de saúde do país, HapVida foi multada pelo Ministério Público do Ceará por pressionar médicos a prescreverem hidroxicloroquina contra a covid-19
Reuters

O Ministério Público Estadual do Ceará (MP-CE) multou a operadora de saúde HapVida, uma das maiores da área de saúde privada do país, em R$ 468 mil por impor que os médicos prescrevam cloroquina ou hidroxicloroquina a pacientes com a covid-19.

A decisão administrativa, da segunda-feira (26/04), foi tomada após relatos de um médico que prestou serviços à operadora de saúde e de uma paciente, que disse ter sido orientada a tomar hidroxicloroquina mesmo sem ter um diagnóstico de covid-19.

A BBC News Brasil procurou a HapVida ao longo do dia para comentar o assunto, mas até o fechamento desta reportagem não havia recebido resposta. Assim que houver um posicionamento, ele será acrescentado ao texto.

Conforme mostrado por reportagem da BBC News Brasil em agosto passado, médicos de diferentes regiões do país relatam que a empresa impõe a prescrição de hidroxicloroquina a pacientes com suspeita ou confirmação de covid-19.

Ao MP-CE, a HapVida afirmou que nunca pressionou seus médicos a prescreverem uma determinada medicação aos pacientes. A empresa tem o prazo de 10 dias para se manifestar contra a decisão administrativa.

Em maio de 2020, a operadora de saúde anunciou que havia adquirido milhares de unidades de hidroxicloroquina e passou a entregá-las gratuitamente aos seus clientes. Segundo médicos ouvidos pela reportagem, foi nesse período que a pressão para a prescrição do fármaco aumentou.

A cloroquina e o seu derivado, a hidroxicloroquina, são medicamentos usados para tratar doenças como lúpus, artrite, reumatoide e malária. Desde o ano passado, estudos apontam a ineficácia desses fármacos para o combate à covid-19. Apesar disso, diversos médicos e empresas continuam defendendo o uso desses remédios para combater a doença causada pelo novo coronavírus.

Jair Bolsonaro sorri e segura embalagem de hidroxicloroquina
Reuters
Presidente Jair Bolsonaro foi um dos principais defensores da hidroxicloroquina contra a covid-19

Um dos maiores defensores desses medicamentos no país, desde o início da pandemia, é o presidente Jair Bolsonaro. Por diversas vezes, ele propagou o uso do fármaco contra a covid-19, mesmo sem qualquer evidência científica.

Entidades médicas não recomendam o uso do medicamento para pessoas infectadas pelo novo coronavírus.

Os estudos apontaram que o uso do medicamento contra a covid-19 não traz nenhum benefício e pode causar efeitos colaterais como retinopatias (problema de visão), hipoglicemia grave e toxicidade cardíaca.

Imposição do uso de hidroxicloroquina

Os detalhes sobre a conduta da HapVida em relação ao uso de hidroxicloroquina no Ceará foram encaminhados ao Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Decon), do MPCE.

O médico Felipe Peixoto relatou ao MPCE que a pressão da HapVida começou a partir de maio passado. Segundo ele, a empresa analisava prontuários de clientes com a covid-19 para avaliar se os profissionais de saúde estavam prescrevendo hidroxicloroquina. Peixoto disse que a empresa criou um "ranking de médicos ofensores" para apontar aqueles que não indicavam o medicamento.

Ainda segundo o médico, um chefe responsável por uma unidade de saúde da rede afirmou, em um grupo de WhatsApp, que "não cabe discussão sobre a hidroxicloroquina" e orientou os profissionais a parar de informar sobre o risco da medicação.

Felipe disse que não prescrevia hidroxicloroquina a pacientes com suspeita de covid-19 e foi questionado por um coordenador. O médico disse ter argumentado que não havia estudos sobre a eficácia do medicamento contra a doença e apontou que o remédio poderia trazer riscos a alguns pacientes, por isso não recomendaria quando não fosse "expressamente necessário e cabível". Dias depois, o médico foi dispensado pela operadora de saúde.

O M-PCE ressalta que há comprovantes dos registros eletrônicos de Peixoto, que confirmam o período em que ele atuou na empresa. O médico também encaminhou prints das conversas em grupos de WhatsApp na qual os médicos recebiam as orientações para receitar o medicamento sem comprovação científica.

O Ministério Público do Ceará também recebeu uma reclamação de uma cliente do plano de saúde. Ela relatou que um médico da HapVida prescreveu o uso de hidroxicloroquina sem que ela tivesse feito o teste para confirmar se estava com covid-19.

Além disso, o Ministério Público menciona que diversas reportagens revelaram a imposição da HapVida sobre a prescrição do fármaco.

Empresa nega

Em resposta ao Ministério Público do Ceará, a HapVida argumentou que não existe qualquer imposição a médicos da operadora para a prescrição da hidroxicloroquina.

A empresa afirmou que entende que qualquer prescrição é uma prerrogativa do médico e acrescentou que "o tratamento do paciente é baseado na autonomia médica e na valorização da relação médico-paciente, com o propósito de oferecer o melhor tratamento disponível".

Ainda em resposta ao MP-CE, a HapVida disse que não faz qualquer tipo de análise das prescrições dos médicos para verificar se indicaram o uso da hidroxicloroquina.

Em relação ao uso de cloroquina e hidroxicloroquina para pacientes com a covid-19, a empresa alegou que elaborou um protocolo para pacientes com a doença que inclui essas medicações. A operadora argumentou que medida semelhante foi adotada pelo Ministério da Saúde, Estados, Municípios e outras operadoras privadas.

Sobre o assunto, o Ministério da Saúde tem alegado que não se trata de um protocolo, mas sim uma possibilidade de ação, conforme documento divulgado ainda sob a gestão do general Eduardo Pazuello.

Segundo a empresa, em resposta ao MP-CE, esse documento tem o objetivo de "orientar e uniformizar a informação para os profissionais que atuam na rede da empresa" e " não implicam em qualquer tipo de imposição ou limitação à autonomia do médico assistente".

Sobre o relato da paciente que disse ter sido orientada a tomar hidroxicloroquina mesmo sem comprovação de que estava com a covid-19, a HapVida argumentou que a mulher havia recebido autorização para passar por exame para avaliar se havia contraído o novo coronavírus.

Testes em laboratório
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Estudos em todo o mundo apontaram que cloroquina não é eficaz contra o novo coronavírus

A multa

Responsável por conduzir o caso, o promotor de Justiça Hugo Vasconcelos Xerez, apontou que a imposição para que os médicos prescrevam medicamentos sem comprovação científica fere diretamente as autonomias desses profissionais e desrespeita a relação médico-paciente. Ele frisou também que a medida é contrária ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) e à autonomia profissional garantida pelo Código de Ética Médica.

"Mesmo existindo qualquer protocolo de manejo clínico da covid-19 por parte do Ministério da Saúde ou do próprio plano de saúde, são os profissionais técnicos habilitados que possuem a palavra final quanto à prescrição ou não dos medicamentos para tratamento da doença. De acordo com o Código de Ética dos Médicos brasileiros, o profissional tem o direito de 'recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência'", assinalou o promotor, que é secretário-executivo do Decon do MP-CE.

Xerez ressaltou que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou que as pesquisas sobre a cloroquina contra a covid-19 sejam abandonadas.

"Portanto, não há que se falar, ainda, em insubsistência da atuação deste órgão, uma vez que as normas em vigor são específicas e vedam colocar no mercado de consumo qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais. A conduta adotada pela reclamada (HapVida) é indevida/ilegal, sendo abusivo que persista e se desdobre para continuar com a prática ilícita objeto do presente procedimento administrativo", asseverou.

"Ante a constatação de que a irregularidade existiu, deve a demanda seguir o seu regular processamento, aplicando à autuada sanção administrativa cabível ao caso", acrescentou Xerez.

Para aplicar a multa de R$ 468.333, o promotor apontou fatores como o porte econômico da empresa, os diversos relatos sobre a imposição para o uso de hidroxicloroquina e o fato de a operadora de saúde não ter reconhecido os relatos dos denunciantes e não ter adotado soluções internas para resolver a situação.

O promotor pediu que a decisão administrativa seja encaminhada para a Agência Nacional de Saúde Suplementar e para o Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec).

No ano passado, o Cremec recebeu denúncias de médicos que relataram ter sido obrigados a prescrever hidroxicloroquina a pacientes com a covid-19. A entidade disse que estava apurando os casos, mas não informou a quais empresas se referiam, sob o argumento de que os procedimentos tramitam em sigilo.

A HapVida foi notificada da decisão administrativa do MP-CE na segunda-feira. A operadora de saúde tem até 7 de junho para pagar a multa ou 10 dias úteis para apresentar um recurso administrativo contra a decisão na Junta Recursal do Programa Estadual de Proteção ao Consumidor (Jurdecon).


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