Profissionais de saúde dizem que é hora de a obesidade ser vista como uma doença causada pela genética, biologia e pela maneira como vivemos hoje.
Uma nova pesquisa reforça a crescente opinião científica de que "obesidade saudável" não existe. O estudo mostra que quem está muito acima do peso tem 66% mais risco de desenvolver doença crônica dos rins.
Muitas pessoas obesas dizem que não só têm que conviver com o preconceito e o estigma, mas também sofrem para encontrar tratamento.
Sarah enfrentou a obesidade durante toda a sua vida adulta. Aos 39 anos, seu Índice de Massa Corporal (IMC) é superior a 40, o que significa que Sarah tem obesidade mórbida. E esse sobrepeso é um risco à sua saúde.
"As pessoas acham que você não é inteligente, que você é preguiçosa, que come demais, que fez isso consigo mesma. Acham que é uma escolha", diz ela. "Só quero gritar e dizer que nada disso é verdade."
Sarah passou grande parte da vida tentando controlar o peso com dietas e exercícios, e diz que pensa na sua obesidade todos os dias.
Crescendo em Jersey, no Reino Unido, Sarah era uma "menina de tamanho normal", até que, na escola primária, começou a desenvolver corpo de adolescente mais cedo do que muitas colegas de sala. Quando estava na escola secundária, num colégio só para meninas, as mudanças da puberdade a faziam se sentir diferente da maioria das amigas.
No início da adolescência, ela já sabia que sua mãe tinha dificuldades com a balança e que havia tentado diferentes dietas ao longo da vida. Por isso, quando começou a engordar, Sarah fez o mesmo.
Aos 16 anos, ela decidiu iniciar uma dieta de 800 calorias que consistia em beber um tipo de milkshake o dia todo. No verão, antes de começar as provas de conclusão do Ensino Médio, ela havia passado do tamanho 42 para 38. Na época, o resultado a fez se sentir "ótima". Mas, internamente, sabia que isso também significava o início de anos e anos de dietas-sanfona.
Sarah estava usando tamanho 40 quando começou a universidade. Mas quando se formou, três anos depois, tinha aumentado oito tamanhos. Seu estilo de vida, que consistia em beber e comer tarde da noite, a impediu de manter o peso sob controle.
Mas, diferentemente de quando tinha 16 anos, as dietas não pareciam funcionar. Foi o início de uma batalha para controlar o peso.
Cientistas descobriram que o peso muda de maneira diferente para cada pessoa, conforme suas características genéticas, ainda que elas comam a mesma quantidade de calorias.
Genes da obesidade
Depois da universidade, Sarah começou a trabalhar na indústria farmacêutica. Ela estava tendo um bom desempenho na área de vendas, vendendo remédios para diabetes, mas ficou abalada com um comentário que o chefe fez.
Ele disse que, quando conheceu Sarah pela primeira vez, pensou: "É bom que você seja uma representante de vendas incrível, já que está tentando vender remédio contra diabetes com essa aparência."
Sarah agora diz que deveria ser ilegal fazer comentários sobre o tamanho e o formato do corpo de alguém. Na época, aos 30 anos, ela tinha obesidade mórbida e estava desesperada para fazer algo a respeito disso, em prol da sua saúde fisica e mental.
Ela embarcou num projeto de um ano com um personal trainer e completou uma prova de triatlon — nadando 1,5 km, pedalando 40km e correndo 10km. Perdeu 55kg.
Nesse período, Sarah fez alguns testes para investigar suas características genéticas. Dois resultados importantes apareceram.
- Ela possui uma variante do gene FTO, que é associado a ganho de peso e maior risco de obesidade
- Ela tem a mutação do receptor MC4, que causa obesidade
Shaw Somers, médico especializado em cirurgia de perda de peso, trata pessoas com obesidade mórbida há muitos anos. Ele diz que pessoas como Sarah, que herdaram certos genes, têm muito mais chances de desenvolver obesidade.
Mas obesidade não é só produto da genética, diz ele. Envolve também psicologia, desigualdades e o ambiente alimentar em que vivemos. Historicamente, diz Somers, as pessoas com essa genética lidariam bem num ambiente de falta de comida, mas com a alta oferta de alimentos calóricos da atualidade, elas vão engordar "se não tiverem forte apoio e determinação".
Denise Ratcliffe, psicóloga clínica que acompanha pacientes que fazem cirurgia bariátrica, diz que as experiências passadas também desempenham um papel nisso. Ela conta que muitos dos seus pacientes tiveram traumas, passaram por abusos ou negligência, por exemplo. E isso pode levar a uma relação desfuncional com a comida.
"Acho que há algo nas experiências psicológicas das pessoas e nos relacionamentos que elas desenvolvem com alimentos que provoca quase que uma tempestade perfeita."
Tanto os componentes genéticos quanto psicológicos da obesidade podem ser amplificados diante do acesso fácil a comidas gordurosas e com muito açúcar, que costumam ser baratas e convenientes.
Jed, amigo de Sarah, também tem obesidade. Ele diz que a cidade onde mora na Inglaterra tem grande efeito em sua saúde. No lado oposto à sua casa, há uma rua com cerca de 20 restaurantes de fast-food.
"Tem fast-food de frango, de hambúrguer, de peixe frito, de kebab, um outro de kebab, um de batata frita, um chinês...", elenca.
Jed diz que recentemente assinou uma petição para tentar impedir outro fast-food de abrir.
"Se você olha para qualquer área da sua cidade que seja de baixo poder econômico, garanto que vai ter mais lojas de fast-food. Não precisamos disso."
Depois de treinar para a prova de triatlon e perder 55 kg, Sarah continuou se exercitando regularmente e seguindo uma alimentação saudável. Mas percebeu que começou a ganhar peso. Não importava o que fizesse, nada fazia diferença.
Abd Tahrani, professor de Medicina para Obesidade na Universidade de Birmingham, diz que há muitas pessoas "biologicamente programadas para conservar energia", ou seja, para acumular e armazenar gordura. Ele explica que sinais do hipotálamo, a parte do cérebro que controla o apetite, bombardeia para a pessoa sensações de fome e desejo de comer que são praticamente impossíveis de combater.
Portanto, mesmo que uma pessoa consiga perder vários quilos fazendo dieta, o corpo tem a memória do peso anterior e luta para voltar a ele.
Pesquisas usando a base de dados do sistema público de saúde do Reino Unido mostram que a chance anual de uma pessoa com obesidade mórbida atingir o peso normal varia de 1 em 700 a 1 em mil.
Após muitos anos se culpando por estar acima do peso, Sarah começou a pesquisar sobre obesidade e percebeu que o próprio corpo estava "agindo contra ela".
Obesidade é uma doença
Uma nova pesquisa feita por especialistas da Universidade de Birmingham, University Hospitals Birmingham e Escola de Medicina de Warwick, no Reino Unido, descobriu que pessoas com obesidade têm risco 66% maior de desenvolver doença crônica nos rins, mesmo que não tenham outras condições de saúde, como diabetes e pressão alta.
O estudo acaba de ser publicado na revista científica American Journal of Kidney Disease, e envolveu dados de 4,5 milhões de pacientes tratados no Reino Unido ao longo de 20 anos.
Esses achados reforçam o corpo de pesquisas científicas que demonstram que "obesidade saudável não existe", diz o professor Indranil Dasgupta, nefrologista da University Hospitals Birmingham e um dos autores da pesquisa.
Estudos anteriores do mesmo time de pesquisadores mostraram que pessoas com obesidade também têm risco maior de desenvolver doenças cardiovasculares e derrames, mesmo sem outros problemas de saúde crônicos.
Muitos profissionais com conhecimento sobre obesidade acreditam ser necessária uma mudança significativa na forma como essa condição é vista pela sociedade médica e o público em geral.
"A percepção pública não entendeu bem que se trata de uma doença real", diz Shaw Somers. "A cada ano que falhamos em controlar a epidemia de obesidade, ela fica exponencialmente pior."
É quase impossível alcançar peso normal só com dieta
Também precisa haver mudanças na compreensão sobre tratamentos, segundo Somers. Muitos programas de perda de peso para pessoas com obesidade começam com "se mexer mais e comer menos", o que é a prevenção da obesidade, não a cura.
"O número de pessoas que encontrei nos meus 30 anos de carreira que conseguiram ir da obesidade mórbida para um peso normal, e manter isso apenas com dieta... Bom, acho que não conheci nenhuma. É muito difícil de alcançar isso", diz o cirurgião.
Evidências indicam que pessoas como Sarah, cujos organismos são programados para ganhar e reter gordura, podem se esforçar ao máximo e mesmo assim não obter os resultados desejados. Isso pode se tornar um grande fardo psicológico.
"Tive momentos muito difíceis, porque me sentia um fracasso", diz Sarah. A psicóloga Denise Ratcliffe diz que muitas pessoas aceitam a narrativa de que são culpadas pela obesidade. Isso e o julgamento da sociedade podem levar a situações em que a angústia mental e o ganho físico de peso se retroalimentam.
"Obesidade é uma causa de problemas de saúde mental. Então, se você tem problemas de saúde mental, é mais provável que tenha obesidade. Mas, se você é obeso, isso também cria dificuldades de saúde mental."
Qual é o tratamento?
O sistema de saúde público britânico, o NHS (equivale ao SUS no Brasil), tem quatro estágios de recomendação para o tratamento do processo de obesidade. O primeiro promove a alimentação saudável e estilo de vida ativo, enquanto o segundo envolve financiamento para programas de emagrecimento. No terceiro, profissionais de saúde dão medicação e orientam mudanças no estilo de vida. O quarto e último estágio ocorre quando os pacientes passam por cirurgia bariátrica para perda de peso.
No Brasil, o SUS também oferece cirurgia bariátrica e acompanhamento psicológico e medicamentoso para quem se enquadrar nos critérios para essa cirurgia, como ter mais de 16 anos e IMC de mais de 40 ( ou IMC de mais de 35 com doenças associadas).
Sarah decidiu que não quer fazer cirurgia bariátrica. Ela argumenta que se fizer a operação e vier a ganhar peso no futuro, vai se sentir muito frustrada.
A cirurgia bariátrica resulta em uma grande perda de peso. Embora pacientes tenham que fazer mudanças permanentes em seus estilos de vida após a operação para evitar ganho de peso, ela também acarreta mudanças hormonais que podem reduzir o apetite. E as evidências de custo-benefício e melhora da saúde têm sido mostradas em diferentes estudos pelo mundo.
Shaw Somers fez cirurgias pelo NHS (SUS britânico) no Hospital Portsmouth. Ele também faz essa cirurgia particular em Londres, em pacientes que podem arcar com o serviço.
"Muitas pessoas que lutam contra a obersidade mórbida têm uma série de condições de saúde que são mais difíceis de serem tratadas por causa da obesidade", diz ele. "Elas ficam presas num ciclo vicioso, no qual suas doenças favorecem o ganho de peso e a obesidade agrava as doenças."
Uma de suas mais recentes cirurgias foi num paciente com doença crônica nos rins. Ele explica que a operação não foi apenas para melhorar a qualidade de vida, mas para salvar a vida daquele homem.
A equipe de Somers conta com nutricionista, psicólogo, enfermeiras e anestesistas. Eles oferecem amplos cuidados pré e pós-operatórios. Todos os seus pacientes passaram por anos de dietas fracassadas, angústia psicológica ou doenças como diabetes e pressão alta, comuns entre quem tem obesidade.
Para Sarah, a esperança está na ciência médica. Pesquisas sobre drogas que suprimem o apetite estão avançando, diz Abd Tahrani.
Também há estudos para produção de drogas para pessoas que, como Sarah, têm mutação no receptor MC4. Tahrani diz que uma droga recentemente aprovada nos Estados Unidos pode alcançar de 15 a 17% de perda de peso. No futuro, ele espera ver remédios que resultem em perda de peso de 20 a 25%, que é o mesmo percentual alcançado com cirurgia bariátrica.
Sarah está se esforçando para se manter o mais saudável possível e para aproveitar da melhor maneira a vida que tem. Ela é uma profissional bem-sucedida que vive num bonito vilarejo em Yorkshire, no norte da Inglaterra.
Solteira e mãe de uma menina, ela diz que sua auto-confiança é boa em todas as áreas, menos na questão do peso. Apesar de todo o seu conhecimento sobre obesidade, Sarah ainda quer ser mais magra. E, de uma vez por todas, deixar de ser julgada por seus quilos a mais.
Ser obesa significa pensar no que pode dar errado. Mesmo um encontro com um amigo num bar traz ansiedade. "Como serão as cadeiras? Será que podem quebrar se eu sentar nelas?".
Mas, para algumas pessoas com obesidade, a confissão de Sarah de que não é feliz com o corpo que tem colide com o argumento de que é preciso rejeitar o estigma e a vergonha de ser obeso. É o que chamam de "positividade corporal".
Sarah respeita esse pensamento, mas diz que não funciona para ela.
"Tenho certa inveja do amor-próprio da comunidade da positividade corporal. Mas é uma comunidade pequena. A grande maioria se sente muito diferente disso."
Levando em conta que os problemas de peso de Sarah são principalmente genéticos, ela não sabe qual será o impacto na sua filha de dois anos, Emily.
"Quero que ela saiba que temos diferentes tamanhos e formas, diferentes cores de cabelo, altura e não importa nossa aparência. Só quero que ela seja ela mesma. Vou me esforçar para passar essa mensagem para ela", diz.
Sarah está abrindo uma ONG para apoiar aqueles com obesidade que se sentem estigmatizados e incompreendidos. Ela quer ser a voz de uma comunidade que raramente é ouvida.
Para vários cientistas e médicos que desenvolveram um conhecimento profundo sobre obesidade, trata-se de uma doença complexa, influenciada por diferentes fatores.
Culpar uma pessoa por sofrer dessa doença vai contra as evidências científicas. "Se culpabilizar funcionasse, já teríamos uma sociedade magra. Todos que sofrem de obesidade foram culpabilizados diversas vezes, seja pelos médicos, pelos vizinhos, a família ou a sociedade em geral. Isso não funciona. Por favor, parem", diz Abd Tahrani.
No Brasil, segundo dados do IBGE, seis em cada dez brasileiros estão acima do peso. A parcela de adultos com obesidade é de 26,8%, o dobro da taxa registrada em 2003.
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