Sobreviver à covid-19 não significa estar completamente livre dos efeitos provocados pelo Sars-CoV-2. Um estudo italiano, apresentado ontem no 7º Congresso da Academia Europeia de Neurologia, constatou que, até dois meses após a alta hospitalar, pacientes podem sofrer de problemas cognitivos e comportamentais. A pesquisa soma-se a trabalhos anteriores que sugerem impactos prolongados da covid-19 no sistema nervoso central. Além disso, os cientistas descobriram que um em cada cinco pacientes relatou transtorno de estresse pós-traumático, sendo que 16% apresentaram sintomas depressivos.
O estudo foi realizado com 49 pacientes atendidos no Hospital San Raffaele, de Milão, e acompanhados por oito semanas depois da alta por covid-19. No período, mais da metade apresentou sintomas como perda de memória, problemas com consciência espacial e dificuldades para processar informações. Além dessa pesquisa, outras duas relacionando a doença e alterações cognitivo-comportamentais foram apresentadas no congresso, durante o fim de semana, e, juntas, incluíram outros 95 casos.
No estudo italiano divulgado ontem, os médicos testaram as habilidades neurocognitivas dos pacientes e realizaram exames de ressonância magnética, que avalia a atividade cerebral. Mais de 50% dos sobreviventes da covid-19 tiveram distúrbios cognitivos. Desses, 16% tiveram problemas com a função executiva (relacionada à memória de trabalho, ao pensamento flexível e ao processamento de informações), 6% enfrentaram dificuldades visuoespaciais (para julgar a profundidade e o contraste das imagens), 6% apresentaram distúrbios de memória e 25% manifestaram uma combinação de todos esses sintomas.
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Sintomas
Segundo Massimo Filippi, pesquisador da Universidade Vita-Salute San Raffaele, de Milão, e principal autor do estudo, os problemas cognitivos e psicopatológicos foram piores em pessoas com menos de 50 anos: a maioria dos pacientes nessa faixa etária demonstraram dificuldades com funções executivas. “Uma descoberta particularmente alarmante são as mudanças nas funções executivas que encontramos, que podem tornar difícil para as pessoas se concentrarem, planejarem, pensarem com flexibilidade e se lembrarem das coisas. Esses sintomas afetaram três em cada quatro pacientes mais jovens que estavam em idade produtiva”, diz.
De acordo com Filippi, a maior gravidade dos sintomas respiratórios da covid-19 durante a admissão hospitalar foi associada ao baixo desempenho das funções executivas. Embora os sintomas cognitivos tenham sido reduzidos, 10 meses depois da internação, de 53% para 36% dos pacientes, não houve indícios, no período, de melhora do estresse pós-traumático nem da depressão. “Acompanhamento e tratamentos adequados são cruciais para garantir que esses pacientes previamente hospitalizados recebam apoio adequado para ajudar a aliviar esses sintomas”, conclui.
Os outros dois trabalhos apresentados no congresso encontraram resultados semelhantes. Também em Milão, mas no Ospedale Maggoiore Policlinico, a equipe do neurologista Mattia Pozzato constatou que 77,5% dos 53 pacientes que tiveram covid-19 relataram pelo menos um sintoma neurológico, e 46,3% deles apresentaram mais de três sintomas do tipo entre cinco e 10 meses depois da alta.
Os mais comuns foram insônia (65,9%) e sonolência diurna (46,3%). Outros sintomas menos frequentes incluíram dificuldade de locomoção, dores de cabeça, hiposmia (capacidade reduzida de olfato) e hipogeusia (perda do paladar). Os autores concluíram que 90% dos pacientes apresentavam sintomas pós-covid-19, e que “os neurológicos constituem uma parte significativa deles”.
Conclusões semelhantes teve Tamara S. Mischenko, chefe do Departamento de Neurologia e Psicologia Médica da Universidade de Karazin, Ucrânia. A equipe da médica acompanhou 42 pacientes, com idade entre 32 e 54 anos, dois e quatro meses depois da alta hospitalar. Os pesquisadores descobriram que 95% apresentavam sintomas de comprometimento neurocognitivo. Todos apresentaram fraqueza muscular, aumento da fadiga e sintomas de ansiedade/depressão. Outros sintomas incluíram distúrbios de equilíbrio (59,2%), dores de cabeça (50%) e redução do olfato (19%). Cinco pacientes também sofreram acidente vascular cerebral nos dois meses após a hospitalização pela covid-19.
Alzheimer
Nenhum desses estudos investigou as causas do comprometimento do sistema nervoso central, mas outras pesquisas demonstraram danos neuronais severos no tecido cerebral de pacientes que morreram em decorrência da covid-19. Tommaso Bocci, neurologista e neurofisiologista do Departamento de Ciências Neurológicas da Universidade de Milão apresentou, no congresso europeu, um trabalho no qual avaliou amostras post-mortem.
“Descobrimos uma alta porcentagem de danos nos neurônios e um número grande de pequenas massas, chamadas corpos amiláceos, que são abundantes em doenças neurodegenerativas”, relatou, em nota. Outros exames indicaram a presença do vírus no tronco encefálico, especialmente no nível medular.
Para Feixiong Cheng, pesquisador do Instituto de Medicina Genômica da Clínica Cleveland, nos EUA, é urgente que estudos de grande porte revelem como o coronavírus da covid-19 afeta o sistema nervoso central. “Embora alguns estudos sugiram que o Sars-CoV-2 infecta as células cerebrais diretamente, outros não encontraram nenhuma evidência do vírus no cérebro”, diz. “Identificar como a covid-19 e os problemas neurológicos estão associados será fundamental para o desenvolvimento de estratégias preventivas e terapêuticas eficazes para lidar com o aumento de deficiências neurocognitivas que esperamos ver em um futuro próximo.”
De acordo com Cheng, embora as pesquisas tenham encontrado poucas evidências de que o vírus atinja o cérebro diretamente, já foram constatadas relações entre o vírus e as proteínas associadas a várias doenças neurológicas, incluindo Alzheimer. O pesquisador estudou as associações entre a covid-19 e inflamações e lesões microvasculares cerebrais, características do mal neurodegenerativo, e descobriu que a infecção por Sars-CoV-2 pode impactar vários genes capazes de levar a um comprometimento cognitivo semelhante à doença de Alzheimer.
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