Arqueologia das mudanças climáticas

Estudar como humanos antigos lidaram com o calor e o frio intensos nos ajuda a enfrentar os dilemas ambientais da atualidade, defendem cientistas

Paloma Oliveto
postado em 31/07/2021 21:29
 (crédito: Manuel Will/Divulgação)
(crédito: Manuel Will/Divulgação)

Diante dos alertas sobre os impactos devastadores do aquecimento global, é natural que se olhe para o futuro quando o assunto são as mudanças climáticas. Porém, o passado também tem muito a dizer a respeito de como variações na temperatura e no regime de chuvas afetam a vida na Terra.

Recentemente, especialistas em paleoclimatologia, uma área interdisciplinar da ciência, passaram a investigar de que forma essas alterações moldaram a adaptação do homem ao planeta. Alguns resultados são surpreendentes — até a estatura teria sido influenciada — e outros, assustadores, como a dizimação de humanos que perderam a batalha para o frio ou o calor intensos.

Voltar-se ao passado para vislumbrar os efeitos de variações climáticas extremas é necessário, especialmente agora, quando essas mudanças, impulsionadas por ações humanas, ocorrem a uma taxa mais rápida do que nunca, argumenta Ariane Burke, antropóloga da Universidade de Montreal, no Canadá. Ela é um dos autores de um artigo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, no qual o grupo defende uma nova disciplina, a arqueologia das mudanças climáticas, uma ciência que usa dados de escavações e registros paleoclimáticos para estudar como os humanos interagiram com o ambiente durante os eventos de alterações na temperatura, como o aquecimento que se seguiu à última era do gelo, há mais de 10 mil anos.

De acordo com Burke, a expectativa é identificar os pontos de inflexão na história climática que obrigaram os seres humanos a reorganizarem as sociedades para sobreviver. “A arqueologia da mudança climática combina o estudo das condições ambientais às informações arqueológicas”, diz a antropóloga, diretora do Grupo de Pesquisa de Dispersões de Hominina do Laboratório de Ecomorfologia e Paleoantropologia. “O que essa abordagem nos permite fazer é identificar a gama de desafios enfrentados pelas pessoas no passado, as diferentes estratégias que usaram para lidar com esses desafios e, em última análise, se elas tiveram sucesso ou não.”

Segundo Burke, estudar o rápido aquecimento que ocorreu entre 14,7 mil e 12,7 mil anos atrás e como os humanos lidaram com isso, por exemplo, pode ajudar os especialistas a modelar possíveis resultados das mudanças climáticas no futuro. Ela sustenta que, historicamente, populações de diferentes estilos de vida encontraram uma variedade de maneiras de se adaptar ao aquecimento do clima, e isso pode informar o presente e ajudar a humanidade a se preparar para o futuro.

Se o Homo sapiens conseguiu, até agora, desenvolver mecanismos de resiliência, a mesma sorte não tiveram outras espécies de humanos do gênero Homo, cujos únicos representantes a sobreviver somos nós. Um estudo publicado, no fim do ano passado, na revista One Earth combinou modelagens climáticas e registros fósseis para buscar pistas sobre a extinção das seis ou mais espécies que coexistiram com o sapiens, sugerindo que a mudança climática desempenhou um papel decisivo nessa questão.

“Nossos resultados mostram que, apesar das inovações tecnológicas — incluindo o uso de fogo e ferramentas de pedra refinadas, a formação de redes sociais complexas e, no caso dos neandertais, até mesmo a produção de pontas de lança coladas, roupas justas e uma boa quantidade de intercâmbio cultural e genético com o Homo sapiens —, as antigas espécies de Homo não sobreviveriam às intensas mudanças climáticas”, diz Pasquale Raia, da Universidade de Nápolis Federico II, na Itália. “Eles se esforçaram, eles foram para os lugares mais quentes ao alcance porque o clima esfriou, mas, no fim, isso não foi suficiente.”

Modelador

Para esclarecer as extinções anteriores de espécies de Homo, incluindo H. habilis, H. ergaster, H. erectus, H. heidelbergensis, H. neanderthalensis e H. sapiens, os pesquisadores utilizaram um modelador de clima que fornece temperatura, precipitação e outros dados dos últimos 5 milhões de anos. Eles também consultaram um extenso banco de dados de fósseis que abrange mais de 2.750 registros arqueológicos para modelar a evolução do nicho climático da espécie Homo ao longo do tempo. O objetivo era entender as preferências climáticas dos primeiros humanos e como eles reagiram às mudanças de temperatura e precipitações.

Os resultados, diz Raia, fornecem “evidências robustas” de que três espécies de Homo — H. erectus, H. heidelbergensis e H. neanderthalensis — perderam uma porção significativa do nicho climático pouco antes de serem extintas. O pesquisador relata que essa redução coincidiu com mudanças bruscas e desfavoráveis no clima global. No caso dos neandertais, as coisas, provavelmente, pioraram ainda mais devido à competição com o H. sapiens.

“Ficamos surpresos com a regularidade do efeito das mudanças climáticas”, diz Raia. “Ficou claro como cristal, para as espécies extintas e apenas para elas, que as condições climáticas eram extremas demais pouco antes da extinção e apenas naquele momento específico.” Ele observa que há incertezas na reconstrução paleoclimática, na identificação de vestígios fósseis ao nível das espécies e no envelhecimento dos sítios paleontológicos. Mas, o pesquisador ressalta que descobertas como a do grupo podem servir como um alerta para os humanos hoje, pois enfrenta-se, agora, mudanças no clima sem precedentes.

“É preocupante descobrir que nossos ancestrais, que não eram menos impressionantes em termos de poder mental em comparação com qualquer outra espécie na Terra, não conseguiram resistir às mudanças climáticas”, diz ele. “E fazemos essa descoberta exatamente quando nossa espécie está cortando o galho em que estamos sentados, causando as mudanças climáticas. Pessoalmente, considero isso uma mensagem de alerta estrondosa. A mudança climática tornou o Homo vulnerável e infeliz no passado, e isso pode estar apenas acontecendo de novo.”

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Impactos no corpo

O tamanho médio do corpo humano oscilou significativamente nos últimos milhões de anos, em um fenômeno fortemente relacionado à temperatura. Climas mais frios e severos impulsionaram a evolução de estaturas maiores, enquanto que os mais quentes levaram às menores. É o que diz uma equipe interdisciplinar de pesquisadores liderada pelas universidades de Cambridge e Tübingen, que publicou os resultados do estudo na revista Nature Communications.

O grupo reuniu medidas do tamanho do corpo e do cérebro de mais de 300 fósseis do gênero Homo encontrados em todo o mundo. Ao combinar esses dados com uma reconstrução dos climas regionais nos últimos milhões de anos, eles identificaram as condições climáticas específicas vivenciadas por cada fóssil quando vivos.

O estudo revela que o tamanho médio do corpo dos humanos flutuou significativamente nos últimos milhões de anos, com os maiores evoluindo em regiões mais frias. Acredita-se que essa estatura atue como um amortecedor contra as temperaturas baixas: menos calor é perdido de um organismo quando sua massa é grande em relação à área de superfície.

“Nosso estudo indica que o clima — particularmente a temperatura — tem sido o principal impulsionador das mudanças no tamanho do corpo nos últimos milhões de anos”, afirma a professora Andrea Manica, pesquisadora do Departamento de Zoologia da Universidade de Cambridge, que liderou o estudo. “Podemos ver pelas pessoas que vivem hoje nos climas mais quentes: elas tendem a ser menores que as habitantes dos climas mais frios. Agora, sabemos que as mesmas influências climáticas estiveram em ação nos últimos milhões de anos.”

Extremos afetaram os maias

 (crédito: Silvia Pavesi/Esp. CB/D.A Press - 8/2/08)
crédito: Silvia Pavesi/Esp. CB/D.A Press - 8/2/08

As razões do declínio populacional da civilização maia é motivo de um longo debate entre cientistas sociais, sendo que boa parte deles aposta que as mudanças climáticas estão por trás do destino desses povos que habitaram a América Central. Um novo estudo da Universidade de McGill, no Canadá, ajuda a corroborar essa tese. Para tanto, os pesquisadores se valeram de uma curiosa prova documental: fezes humanas. De acordo com o artigo, publicado na revista Quaternary Science Reviews, variações extremas — secas e períodos muito úmidos — contribuíram para quedas demográficas dos maias.

Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores utilizaram uma técnica relativamente nova, que consiste na observação de estanóis — moléculas orgânicas encontradas na matéria fecal humana e animal — retirados do fundo de um lago próximo. As medições dos estanóis foram usadas para estimar as mudanças no tamanho da população e para examinar como elas vão ao encontro de informações sobre mudanças no clima e na vegetação, obtidas por meio de outras fontes biológicas e arqueológicas. O estudo foi feito em Itzan, na Guatemala.

Com a técnica, os pesquisadores mapearam as principais mudanças na área, ao longo de um período que começou 3,3 mil anos antes de Cristo. Também identificaram alterações nos padrões de assentamento associadas a mudanças no uso da terra e nas práticas agrícolas.

O estanol fecal do sedimento na Laguna Itzan confirma que a população maia na área diminuiu devido à seca em três períodos: entre 90 e 280 d.C; 730 e 900 d.C, e 1.350 e 950 a.C. Os pesquisadores também descobriram que a população caiu durante um período excessivamente chuvoso de 400 a 210 a.C.

Os dados mostram que houve efeitos na população em ambos os extremos climáticos. “É importante, para a sociedade em geral, saber que existiram civilizações antes de nós que foram afetadas e adaptadas às mudanças climáticas”, diz Peter Douglas, professor-assistente do Departamento de Ciências da Terra e Planetárias e autor sênior do artigo.

A pesquisa também demonstra que o povo maia pode ter se adaptado a questões ambientais, como degradação do solo e perda de nutrientes, usando técnicas como a aplicação de dejetos humanos como fertilizante para as plantações. Isso é sugerido por uma quantidade relativamente baixa de estanóis fecais no sedimento do lago, em um momento onde, segundo as evidências, a população humana era grande. Uma explicação é que as fezes foram aplicadas ao solo como fertilizante e, portanto, os estanóis não foram carregados para o lago. (PO)

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