Meio Ambiente

Aquecimento global leva ecossistemas a uma devastação sem retorno

Estudos demonstram que diversos sistemas da Terra atingiram - ou estão próximos de - um ponto de colapso só reversível em séculos ou milênios. Sessenta por cento da Floresta Amazônica poderá virar savana antes do imaginado

Paloma Oliveto
postado em 15/08/2021 06:00
 (crédito: Jonathan Nackstrand/AFP - 17/8/19)
(crédito: Jonathan Nackstrand/AFP - 17/8/19)

Há 11 anos, um dos mais importantes cientistas climáticos do mundo, Tim Lenton, da Universidade de Exeter, na Inglaterra, alertou que, sem políticas ambiciosas de contenção das emissões de CO2, o planeta se aproximaria de uma série de pontos de inflexão — quando, puxada pelo aquecimento, a temperatura passa de um limite crítico, resultando em impactos acelerados e irreversíveis. Poucos o escutaram.

Na época, o mundo se preparava para as negociações do documento que sucederia o Protocolo de Kyoto, com compromissos de redução das emissões, e havia grandes expectativas para a Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) daquele ano, em Copenhague. Os alertas da equipe de Lenton não surtiram o efeito que deveriam, nem o acordo celebrado na Dinamarca avançou.

Mais de uma década depois, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), grupo de cientistas de todo o mundo que fornece subsídios para as COPs, confirmou, com base em estudos atualizados, que o aquecimento global causado pela atividade humana empurra o sistema Terra para um colapso generalizado. Os fenômenos consequentes poderão levar milênios para serem revertidos, caso do derretimento de geleiras. “Agora, vemos evidências de que mais da metade dos pontos de inflexão já foram ativados”, diz Lenton, diretor do Instituto de Sistemas Globais da Universidade de Exeter.

A Terra é um sistema interconectado, e fatos aparentemente sem relação impactam em todo o globo. Como em um efeito dominó, a queda de uma peça na Antártica ou na Groenlândia, por exemplo, derrubará ilhas do Pacífico, engolidas pelo aumento do nível do mar. A Califórnia arderá ainda mais, porque o degelo faz desaguar no Oceano Atlântico água doce, e essa, em excesso, interfere em uma importante corrente regulatória do clima global.

Por sua vez, a desregulação da chamada circulação meridional de capotamento do Atlântico (Amoc), da qual faz parte a corrente do Golfo, afetará das monções indianas às precipitações tropicais. A consequência, para o Brasil, será uma Amazônia ainda mais seca. Sem esse importante captador de carbono, o mundo pode esperar a emissão de toneladas de gases de efeito estufa para a atmosfera, algo que já começa a ocorrer, porque, devido ao desmatamento recorde, a floresta chegou, recentemente, ao ponto de liberar mais do que estocar CO2.

A pesquisa mais atual da equipe de Tim Lenton identificou nove pontos de inflexão já ativos ou bem próximo disso: Floresta Amazônica, gelo marinho ártico, manto de gelo da Groenlândia, florestas boreais, permafrost, circulação meridional de capotamento do Atlântico, manto de gelo da Antártica Ocidenteal, partes da Antártica Oriental e corais de água quente.

O mais preocupante, segundo o cientista, é que esses sistemas já estão ameaçados com um aumento de 1,1ºC em relação à temperatura da época pré-industrial, no século 19. Como dificilmente a economia baseada em combustíveis fósseis será extinta antes de 2050, a expectativa é de que, daqui a três décadas, a Terra cruzará a barreira de 1,5°C. Até o fim do século, o pior cenário prevê 3°C de aquecimento.

“Podemos já ter cruzado o limiar de uma cascata de pontos de inflexão inter-relacionados. No entanto, a taxa de progresso e, portanto, o risco que representam, pode ser reduzida cortando nossas emissões”, ressalta Lenton, insistindo para que formuladores de políticas públicas não atrasem mais a adoção de medidas realmente ambiciosas.

Modelos

O efeito dominó provocado pelas temperaturas críticas também foi alvo de estudo do Instituto Postdam para Pesquisa de Impacto Climático (PIK), na Alemanha. Os pesquisadores fizeram uma análise de risco, simulando, em modelos computacionais, os impactos do derretimento de geleiras em um aumento de temperatura entre 1,5°C e 2°C sobre Groenlândia, corrente do Golfo, Antártica e Floresta Amazônica. Essa é a faixa de crescimento máximo nos termômetros, em relação aos níveis pré-industriais, determinado pelo Acordo de Paris, na COP-21, em 2015.

“Embora sejam uma análise de risco, e não uma previsão, nossas descobertas geram preocupação”, diz Ricarda Winkelmann, líder do Laboratório sobre Resiliência da Terra no Antropoceno do PIK. “Descobrimos que a interação desses quatro elementos pode torná-los globalmente mais vulneráveis devido à desestabilização mútua no longo prazo”, afirma.

Um terço das simulações mostra efeito dominó já com aquecimento global de até 2°C — o relatório do IPCC, divulgado na segunda-feira, destacou que, em um cenário de redução das emissões, em duas décadas, o planeta estará 1,5°C mais quente que no século 19. O documento também afirma que, com poucas medidas eficazes, o século terminará com 3°C acima dos níveis pré-industriais.

Winkelmann lembra que os quatro elementos estudados “são partes do sistema terrestre que, uma vez em estado crítico, podem sofrer grandes mudanças e possivelmente irreversíveis em resposta a perturbações”. Eles podem parecer estáveis até que um limite crítico seja excedido. No documento do IPCC, os cientistas demonstraram preocupação especial com o derretimento das geleiras, que, segundo o texto, levará séculos ou milênios para se recuperar.

“Aqui está apenas um exemplo das muitas interações complexas entre os elementos de inflexão do clima: se houver derretimento substancial da camada de gelo da Groenlândia liberando água doce para o oceano, isso pode desacelerar a circulação meridional de capotamento do Atlântico, que é impulsionada por diferenças de temperatura e salinidade e transportes de grandes quantidades de calor dos trópicos às latitudes médias e regiões polares”, explica Nico Wunderling, também do Instituto Postdam.

“Isso, por sua vez, pode levar ao aquecimento global no Oceano Antártico e, portanto, a longo prazo, à desestabilização de partes do manto de gelo da Antártica. O fenômeno contribui para o aumento do nível do mar e aumento das águas nas bordas dos mantos de gelo em ambos hemisférios, contribuindo para uma desestabilização mútua ainda maior.”

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À beira do abismo

No relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas, os cientistas expressaram grande preocupação com a Amazônia. Embora ainda não tenha atingido o ponto de inflexão, a maior floresta tropical do mundo pode cruzar esse limiar antes do que se pensava anteriormente, com 40% do bioma se transformando em savana, segundo um estudo publicado na revista Nature Communications.

As florestas tropicais são muito sensíveis às mudanças que afetam as chuvas por longos períodos, diz Arie Staal, pesquisador do Instituto Copérnico da Universidade de Ultrecht, na Holanda, e principal autor do estudo. “Em cerca de 40% da Amazônia, a precipitação está agora em um nível onde a floresta poderia se transformar em savana”, diz. De acordo com ele, as conclusões preocupam porque partes da região amazônica estão recebendo menos chuva do que o esperado, e essa tendência deve piorar à medida que o calor aumenta, devido às emissões de gases de efeito estufa.

Esse cenário se agrava por causa do desmatamento. Em 2018, o climatologista Carlos Nobre, da Universidade de São Paulo (USP) e o pesquisador norte-americano Thomas Lovejoy, da Universidade de Fairfax, publicaram um editorial na revista Science Advances, advertindo que, com uma perda florestal de 20% a 25%, o ponto de inflexão do bioma, irreversível por pelo menos centenas de anos, chegaria nos próximos 10 ou 15 anos. A análise se baseou em observações de satélite da Agência Espacial Norte-Americana (Nasa).

Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Aeroespaciais (Inpe), 17% do bioma foi desmatado. Desde 2019, as taxas de desflorestamento estão sofrendo aumentos recordes e, de janeiro a junho de 2021, a floresta perdeu uma área de 4.014km², a maior registrada no primeiro semestre em uma década. (PO)

Bem-vindos a Brasília, o inferno na Terra

Os mais jovens podem não acreditar, mas o tempo em Brasília já foi agradável. Quando eu era criança, nos anos 1980, aprendíamos na escola sobre o clima “tropical de altitude”, caracterizado por noites frescas, e ter ventilador em casa era impensável. Quatro décadas depois, confesso sem nenhum orgulho que comprei o quarto aparelho de ar-condicionado.

A climatologia corrobora a percepção dos mais velhos de que a capital esquentou, e muito. De 1975, quando nasci, até a década passada, a cidade ganhou quase um mês extra por ano com temperaturas máximas superiores a 32ºC, segundo compilação feita pelo The New York Times no aplicativo How much hotter is your hometown.? O número de noites quentes por ano, aquelas com temperaturas acima de 20ºC, decuplicou (isso mesmo, decuplicou) desde a fundação da cidade, segundo compilação feita pelo Instituto Nacional de Meteorologia. O número de dias muito secos também subiu. Segundo a meteorologista Morgana Almeida, do Inmet, Brasília esquentou 2ºC em média nos últimos 50 anos. É o dobro do que o planeta inteiro aqueceu desde 1850.

Mas não há nada tão ruim que não possa piorar.

O AR6, o grande relatório que o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), trouxe pela primeira vez um Atlas interativo com previsões climáticas regionais de curto, médio e longo prazo. O painel do clima raciocinou que, uma vez que é inevitável ultrapassarmos já por volta de 2030 o limiar perigoso de 1,5ºC de aquecimento global, é melhor trazer informações sobre o que acontecerá nos próximos anos, para embasar ações de adaptação do poder público.

Três regiões do Brasil preocupam os cientistas: o Nordeste, que já está mais seco que o normal por ação humana; o Sul, que ficou mais chuvoso; e uma grande área chamada “Região de Monção Sul-Americana” ou SAM, que compreende partes de Brasil, Peru, Bolívia e Argentina. De acordo com o AR6, essa região terá um dos maiores aumentos de temperatura do mundo nos dias mais quentes do ano — de 1,5 vez a duas vezes mais do que a taxa média de aquecimento global. Grande parte da Amazônia e do Centro-Oeste, incluindo o DF, estão nessa região.

Em outubro de 2021, mês mais quente do ano, a previsão da média dos 34 modelos computacionais de clima usados pelo IPCC é de que a SAM esteja 2,2ºC mais quente que durante a era pré-industrial. No pior cenário de emissões, para outubro de 2031, o aquecimento médio será de 2,8ºC. Em 2091, se não fizermos nada, a média será 8,5ºC maior. Significaria, essencialmente, a impossibilidade da vida humana na região — com 4ºC de aquecimento já seria impossível viver sem estar permanentemente em ambientes refrigerados.

Esse cenário extremo pode ser praticamente descartado: o mundo após o Acordo de Paris, ao menos por enquanto, já saiu da trajetória dos piores cenários do IPCC. Mas, mesmo em cenários mais benignos de emissão, os próximos anos reservam aos brasilienses o inferno na Terra. E eu não estou falando só de política.

Claudio Angelo é coordenador de Comunicação do Observatório do Clima e autor de A espiral da morte – como a humanidade alterou a máquina do clima (Companhia das Letras, 2016)

 

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