Brasil retrocede, aponta ONU

Relatório que avalia os compromissos assumidos pelos signatários do Acordo de Paris destaca que o país é o único integrante do G20 a dar margem ao aumento de emissões de CO2. Também houve recuo na proposta do México, suspensa pela Justiça

» Paloma Oliveto
postado em 26/10/2021 21:53
 (crédito: Carl de Souza/AFP - 16/8/20)
(crédito: Carl de Souza/AFP - 16/8/20)

Um dia depois de alertar que as concentrações de CO2 na atmosfera atingiram um nível recorde, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou novo relatório, demonstrando que, a depender da boa vontade dos signatários do Acordo de Paris, “o mundo está no caminho de uma catástrofe”, nas palavras do diretor-geral, António Guterres. O documento critica o Brasil diretamente, ao destacar que, em vez de cortar, a revisão das metas climáticas do país aumentarão — e muito — as emissões de gases de efeito estufa.

Com o México, o Brasil é o único integrante do G20 cujas contribuições nacionalmente determinadas (NDCs) retrocederam, de acordo com os dados do Relatório sobre Lacuna de Emissões. As NDCs são compromissos voluntários assumidos pelos signatários do Acordo de Paris e teriam de ser elaboradas em 2015 e reapresentadas cinco anos depois, com um aumento no nível de ambição. Em dezembro do ano passado, o governo surpreendeu o mundo ao anunciar uma revisão que vai fazer o país emitir 307 milhões de toneladas de CO2 a mais anualmente, até 2030, nos cálculos da ONU.

“O México, além de emitir bem menos (14 milhões de toneladas anuais), teve suas NDCs suspensas pela Justiça. Então, o Brasil sai como o grande vilão do relatório, o único do G20 que andou para trás”, avalia a advogada Stela Herschmann, especialista em políticas climáticas do Observatório do Clima (OC), que agrega mais de 30 entidades da sociedade civil.

“Pedalada”
A primeira NDC do Brasil, ratificada em 2016, previa reduzir as emissões em 37% até 2025 e em 43% até 2030, tendo como base o Inventário Nacional de 2005. Já a anunciada no fim do ano passado mantém os mesmos percentuais, mas foi considerada uma “pedalada” por especialistas em políticas climáticas, porque, entre 2016 e 2020, o inventário, elaborado pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), foi atualizado.

Enquanto o de 2005 apontava que o país emitia, anualmente, 2,1 bilhões de toneladas de carbono equivalente, o mais recente mostrou que as emissões nacionais subiram para 2,8 milhões de toneladas. Ao insistir nas mesmas metas da primeira NDC, mas usando como base o inventário de 2020, o governo brasileiro, na verdade, abre margem para um aumento de 0,46% nas emissões em 2025, e de 0,4% em 2030.

“Para ser levado a sério na COP, o Brasil teria de apresentar algum resultado. Mas, a uma semana da COP (a conferência do clima, que começa no sábado, em Glasgow), não só não apresentou nada, como chega com esse retrocesso”, avalia o ambientalista Márcio Astrini, secretário-executivo do OC. O especialista em políticas climáticas conta que a imagem do país entre as demais delegações que irão à Escócia é a pior possível. “A conversa entre os delegados é a de que, se não atrapalhar, já está bom demais.”

Avanço tímido
Mesmo não tendo retrocedido como o Brasil, os demais 48 países mais o bloco da União Europeia signatários do Acordo de Paris pouco avançaram em suas NDCs, segundo o relatório elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). De acordo com o documento, juntando as NDCs anunciadas e as promessas de mitigação para 2030 que ainda não foram submetidas oficialmente, a redução das emissões anuais seria apenas de 7,5%. Se o mundo quiser alcançar a meta de limitar o aumento de temperatura em 2°C acima dos níveis pré-industriais, esse corte teria de ser de 30%. Já para o objetivo mais ambicioso, de 1,5°C, a redução necessária é de 55%.

“O relatório mostra que estamos muito longe mesmo da meta de 2°C. As NDCs e as promessas que temos agora nos levam a um mundo 2,7°C mais quente no fim do século”, observa Stela Herschmann. Ela diz que não é impossível cumprir o acordo de Paris, mas, para tanto, “seriam necessárias mudanças muito drásticas e urgentes”. Se todos os pontos apresentados pelos países forem colocados em prática efetivamente, o planeta chega a 2100 com uma temperatura 2,2°C maior que a da era pré-industrial. “O que já é uma catástrofe”, ressalta a especialista em políticas climáticas.

“Como o relatório aponta, se os países cumprirem suas NDCs para 2030 e os compromissos de emissões líquidas zero que foram anunciados até o fim de setembro, estaremos caminhando para aumentos médios da temperatura global de pouco mais de 2°C”, disse, em nota, o presidente da COP 26, Alok Sharma. “Houve progresso, mas não o suficiente. É por isso que precisamos que, especialmente os maiores emissores, as nações do G20, assumam compromissos mais fortes até 2030, se quisermos que seja possível manter 1,5°C ao alcance durante esta década crítica.”

Os grandes protagonistas dessa história são China e Estados Unidos, os maiores emissores mundiais de gases de efeito estufa, lembra Márcio Astrini, do OC. “Eles teriam de dobrar as ambições para chegar a 2030 com uma trajetória razoável, isso considerando que são apenas promessas. A China apresenta em conta-gotas e de uma forma não transparente. Já o presidente dos EUA (o democrata Joe Biden) anuncia uma coisa e o Congresso do país diz outra.”

Para Joanna Depledge, pesquisadora do Centro para Governança de Meio Ambiente, Energia e Recursos Naturais de Cambridge, no Reino Unido, o quadro pintado pelo relatório da ONU é “sombrio”: “Menos da metade das NDCs recebidas de governos são genuinamente mais ambiciosos do que a primeira rodada apresentada em 2015 ou 2016. Em flagrante contradição com o espírito do Acordo de Paris, países do G20 enviaram atualizações que não são melhores do que sua oferta anterior”, afirma, citando o Brasil e o México. Depledge também acusa a Rússia de apresentar compromissos “tão fracos que não exigem nenhuma ação política adicional”.

A especialista, porém, destaca que o documento também aponta para alguns avanços. “O relatório encontra pontos positivos em meio ao tom pessimista. Quase 50 países já declararam metas líquidas de emissão zero. Crucialmente, esse clube agora inclui os dois maiores emissores do mundo, China e Estados Unidos. Esse é um grande passo à frente em relação ao ano passado, quando os EUA eram um pária do clima sob Donald Trump, e a China ainda não tinha feito sua declaração inovadora de meta zero líquida para 2060 à Assembleia Geral da ONU.”

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Anfitriã ausente

Após alguns dias de repouso, que incluiram uma internação para se submeter a exames, a rainha Elizabeth II, de 95 anos, retomou, ontem, seus compromissos oficiais. Por recomendação médica, no entanto, renunciou à participação na conferência climática da ONU, a COP26, da qual é a anfitriã. “Depois de receber um aviso aconselhando-a a descansar, a rainha realiza tarefas leves no Castelo de Windsor. Sua Majestade lamentou não viajar a Glasgow para participar da recepção na segunda-feira, 1º de novembro”, anunciou o Palácio de Buckingham, em um comunicado.

A Ásia pegando fogo

 (crédito: Sujit Jaiswal/AFP - 17/5/21 )
crédito: Sujit Jaiswal/AFP - 17/5/21

O ano passado foi o mais quente já registrado na Ásia, segundo um relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM) da ONU. O documento apontou que a temperatura média em 2020 foi 1,39ºC superior à registrada no período 1981-2010. O aquecimento foi sentido em todo continente, com temperaturas recordes na Sibéria, mas também nos oceanos Índico, Pacífico e Ártico.

No fim de junho, os termômetros chegaram a 38°C em Verkhoyansk, no nordeste da Sibéria Russa, a temperatura mais alta já conhecida ao norte do Círculo Polar Ártico. O relatório também observa que as temperaturas na superfície da água na Ásia aumentam mais rápido do que no restante do mundo. Em algumas partes do Mar Arábico, ou do Oceano Ártico, o aumento é três vezes superior à média.

Em relação às geleiras localizadas na Ásia, a OMM adverte que o retrocesso está se acelerando e prevê que “sua massa diminuirá de 20% a 40% até 2050, o que afetará a vida e os meios de subsistência de 750 milhões de pessoas”. “O desenvolvimento sustentável está ameaçado. A insegurança quanto à alimentação e à água, os riscos sanitários e a degradação do meio ambiente estão aumentando”, alertou a agência da ONU.

A organização destaca que as mudanças climáticas e os fenômenos meteorológicos extremos “causaram, em 2020, a perda de milhares de pessoas, deslocaram milhões e custaram centenas de bilhões de dólares” no continente asiático. Segundo os cálculos da OMM, esses fenômenos provocaram perdas de US$ 238 bilhões à China; US$ 87 bilhões à Índia; US$ 83 bilhões ao Japão; e US$ 24 bilhões à Coreia do Sul.

“Os riscos meteorológicos e climáticos, particularmente inundações, tempestades e secas, tiveram impactos importantes em vários países da região”, afirmou o secretário-geral da OMM, Petter Taalas. Em 2020, inundações e tempestades afetaram 50 milhões de pessoas e causaram mais de 5 mil mortes. Os números são inferiores à média anual das últimas duas décadas (quase 15.500 mortes e 158 milhões de afetados), mas a OMM atribui isso ao “sucesso dos sistemas de alerta precoce em muitos países asiáticos”.

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