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Cientistas buscam formas de identificar transtorno pós-traumático com exatidão

Série do Correio Braziliense mostra como pesquisadores têm buscado soluções para melhorar a assistência a pessoas com transtorno de estresse pós-traumático. Um dos desafios é identificar a doença com mais eficácia

Vilhena Soares
postado em 26/12/2021 06:00
 (crédito:  AFP)
(crédito: AFP)

Segundo William Shakespeare, um dos poetas mais famosos da história, manter lembranças é uma tarefa fácil para a memória humana. Esquecer, porém, se torna difícil para "quem tem coração". A citação do escritor inglês pode ser usada para explicar os desafios enfrentados pelas pessoas que sofrem com o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), um problema de saúde em que recordações traumáticas nunca vão embora. Pesquisadores têm se dedicado a estudos focados em melhores formas de lidar com essa complicação. Uma das frentes que têm avançado é a voltada para o desenvolvimento de novas técnicas de diagnóstico.

Geralmente, os testes de identificação do TEPT são feitos por meio de um questionário composto por perguntas relacionadas ao passado do paciente. Apesar de eficaz, o método, segundo profissionais da área, pode ser melhorado. "As escalas atuais avaliam os efeitos mais comumente conhecidos da exposição ao estresse traumático. Isso limita a avaliação do paciente e pode levar a diagnósticos errados e a tratamento ineficaz", explica Aviva Goral, pesquisadora da Escola de Saúde Pública da Universidade de Negev, em Israel. "Nossa pesquisa foi conduzida para abordar essa lacuna desenvolvendo uma ferramenta de avaliação abrangente, chamada Escala de Resposta ao Estresse Traumático Contínuo (CTSR)", conta.

A CTSR tem um número maior de questões, que não estão relacionadas apenas às lembranças traumáticas, tentando, dessa forma, acessar mais detalhes sobre a saúde mental do paciente. Goral e sua equipe testaram os dois métodos — o tradicional e o experimental — em um grupo de 313 adultos. Parte dos voluntários havia sido exposta a ameaças contínuas à segurança entre dezembro de 2016 e fevereiro de 2017, na Faixa de Gaza. A outra parcela não tinha passado por uma experiência do tipo. Ao comparar os resultados, a equipe descobriu que a CTSR revelou dados mais ricos relacionados ao trauma, como níveis de desconfiança, exaustão mental, retraimento social, sensação de vazio, desesperança, estranhamento e sensação de estar constantemente ameaçado.

Os cientistas avaliam que os resultados obtidos podem contribuir para o desenvolvimento de melhores abordagens contra o TEPT, tanto no diagnóstico do transtorno quanto na escolha de terapias. "Esse estudo e a ferramenta de diagnóstico que ele produz poderiam beneficiar Israel e pessoas ao redor do mundo que sofrem de traumas contínuos e sintomas relacionados. Também podemos indicar ao paciente com retraimento social maior que participe de atendimentos psicológicos em grupo, por exemplo, para tratar essa limitação", afirma Doug Seserman. Segundo o coautor do estudo, novas pesquisas estão em andamento com um número maior de voluntários e em populações mais amplas.

Escolhas personalizadas

Outra alternativa, que pode ajudar no diagnóstico do TEPT com mais acurácia, é a divisão do transtorno em subgrupos. A estratégia é defendida por cientistas americanos. "Um grande obstáculo na compreensão e no tratamento do TEPT é sua heterogeneidade clínica e neurobiológica. A fim de melhor tratar a condição e abordar essa barreira, muitos pesquisadores, como nós, têm buscado identificar subtipos dessa enfermidade com base na disfunção em redes neurais específicas", explica Audreyana Jagger-Rickels, pesquisadora do Laboratório de Atenção e Aprendizagem de Boston, nos Estados Unidos.

Jagger-Rickels e colegas submeteram 271 veteranos de guerra dos EUA a exames de ressonância magnética, além de testes que mediram o nível do transtorno e o funcionamento cognitivo (neuropsicológico). Os resultados mostram que os veteranos com um quadro mais grave do transtorno apresentaram alta interrupção na comunicação entre duas redes do cérebro: a de controle cognitivo e a de processamento emocional. "Graças a uma combinação de assinaturas cognitivas e cerebrais, esse estudo fornece evidências preliminares para um subtipo 'neurocognitivo' de TEPT", diz Michael Esterman, também autor do estudo.

Os pesquisadores esperam que os resultados ajudem a identificar indivíduos que poderão se beneficiar de tratamentos específicos para o TEPT e também levem a novos tratamentos. "O nosso principal objetivo é diagnosticar e tratar um indivíduo com base no seu perfil clínico e biológico, em vez de simplesmente usar um diagnóstico geral e extremamente amplo", afirma Esterman. "Esses pacientes podem responder melhor a estratégias de tratamento específicas e também encontrar dificuldade em se envolver em terapias que requerem altos níveis de regulação emocional e funcionamento executivo. Podemos, com base nesses dados, direcioná-los para o melhor caminho", acrescenta.

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Caracterísicas do DNA podem revelar sinais precoces

Para um grupo de cientistas dos Estados Unidos, a genética pode indicar os riscos de uma pessoa ter transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) antes de os sintomas se manifestarem. Esse cenário, avaliam, poderia contribuir para a escolha de um tratamento mais eficaz. Detalhes de uma pesquisa que sustenta a proposta foram apresentados na revista Nature Genetics. "O TEPT é um transtorno mental grave, que pode ocorrer após a exposição a um estresse extremo com risco de vida. Estima-se que metade a mais de três quartos dos americanos experimentam eventos traumáticos ao longo da vida, mas a maioria não desenvolve a enfermidade", explicam os autores do artigo.

O texto também indica que estudos anteriores mostraram que a raiz dessa diferenciação pode estar presente no DNA. "Há muito que se sabe que a suscetibilidade ao TEPT é hereditária. Como outros transtornos mentais, é um fenótipo extremamente complexo, que acreditamos ser influenciado por vários genes", detalham os autores. A equipe realizou uma análise ampla com mais de 250 mil combatentes de guerra, avaliando os registros eletrônicos de saúde dos soldados aposentados, para entender como questões genéticas poderiam estar relacionadas ao transtorno.

Os dados médicos foram avaliados de forma combinada com informações genéticas. Por meio da investigação apurada, a equipe chegou a 18 mutações que parecem estar associadas ao transtorno do estresse pós-traumático. "Estamos muito intrigados com as descobertas desse estudo (...). Elas nos dão novos dados relacionados à base biológica dessa enfermidade e podem contribuir para um melhor tratamento desse transtorno", enfatiza, em comunicado, Murray Stein, professor de psiquiatria e medicina familiar e saúde pública na Escola de Medicina da Universidade da Califórnia.

Maior precisão

Segundo Rafael Vinhal, psiquiatra do Instituto Castro e Santos (ICS), em Brasília, diagnósticos mais precisos do TEPT podem ser alcançados com o auxílio de diferentes tipos de análises, considerando que uma série de fatores contribui para o surgimento do transtorno. "É claro que só uma pessoa que viveu um evento traumático poderá vir a sofrer TEPT, mas temos indivíduos que passaram por situações difíceis e não têm esse problema. Aí, está o fator genético", indica. "Mas, infelizmente, ainda não temos um teste assim disponível."

O médico lembra que um diagnóstico apurado do transtorno pode proporcionar uma triagem mais eficaz dos tratamentos disponíveis. "Os primeiros 30 dias de estresse alto manifestado por um trauma são o período em que as intervenções padrão, como medicamentos e terapia, podem surtir melhores resultados. Ter um diagnóstico nesse período é o ideal. Além disso, as análises mais minuciosas podem ajudar a guiar o especialista na escolha do melhor tratamento. Seria algo bastante útil", justifica. 

Impactos da pandemia

"A identificação incorreta do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) também gera um risco para outras complicações — como depressão, transtorno de ansiedade e transtornos de personalidade — não serem tratadas corretamente. Devemos reivindicar um diagnóstico correto, já que essa enfermidade é uma resposta profunda e severa a eventos catastróficos. Dados recentes mostram que menos da metade dos adultos e dois quintos dos jovens que preenchem os critérios desse tipo de transtorno buscaram ajuda de algum profissional de saúde. Essas descobertas dialogam com nossa experiência clínica, percebemos que as pessoas com TEPT, geralmente, acham difícil procurar ajuda por preocupações com o estigma ou por medo de que não haja um tratamento eficaz, por exemplo. Além do mais, apenas uma pequena proporção das pessoas que acessam os serviços de saúde recebe um diagnóstico. Esse subdiagnóstico é motivo de preocupação, porque os adultos que atendem aos critérios para essa enfermidade são seis vezes mais propensos a tentar o suicídio, e os jovens, 10 vezes mais. Priorizar a identificação desse transtorno agora pode ser particularmente oportuno, porque a pandemia da covid-19 pode ter impactado ainda mais esses dados."

John Tully pesquisador da Universidade de Nottingham, e Dinesh Bhugra, cientista do Instituto de Psiquiatria e Psicologia do King's College London, ambos no Reino Unido, em artigo ao jornal The BMJ

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