No início da pandemia do Sars-CoV-2, acreditava-se que crianças estariam imunes ao vírus. Contudo, logo ficou claro que elas não apenas se infectavam como poderiam, como adultos, desenvolver sintomas de longo prazo. Até então, não havia um consenso sobre a caracterização da covid prolongada na faixa etária abaixo dos 18 anos. Agora, dois grandes estudos financiados pelo Instituto Nacional de Saúde do Reino Unido, com a colaboração de 120 cientistas internacionais, preencheram esse vazio e podem, segundo os autores, ajudar a estabelecer melhores critérios para pesquisas sobre diagnóstico e tratamento.
Publicado na revista Archives of Disease in Childhood, do British Medical Journal, um dos artigos traz a primeira definição de covid pós-aguda em crianças e jovens. De acordo com os autores, a caracterização complementa a proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para covid longa em adultos. "Se amplamente adotada, ajudará substancialmente a fortalecer a base de evidências dessa condição debilitante", escreveram os autores.
Terence Stephenson, professor do Instituto de Saúde Infantil da Universidade College Londres e principal autor dos dois estudos, diz que há uma grande quantidade de definições usadas atualmente — todas diferentes em número, tipo e duração dos sintomas. Isso, segundo ele, contribuiu para as variações muito amplas relatadas na prevalência de covid longa em crianças: de 1% a 51%. De acordo com ele, uma definição da condição permitirá que os pesquisadores comparem e avaliem, de forma confiável, estudos sobre prevalência e curso da doença.
O consenso foi alcançado por um painel de 120 especialistas internacionais. Entre as declarações dos médicos e pesquisadores consultados, concordou-se em classificar de covid longa "uma condição na qual uma criança ou jovem apresenta sintomas (pelo menos um dos quais é físico) que: continuaram ou se desenvolveram após um diagnóstico de covid, impactaram seu bem-estar físico, mental ou social, interferem em algum aspecto da vida diária (escola, trabalho, casa ou relacionamentos), e persistem por pelo menos 12 semanas após o teste inicial, mesmo que tenham aumentado e diminuído durante esse período.
"Esse trabalho é de extrema importância para os pacientes e pesquisadores, pois, sem dúvida, resultará em uma melhoria substancial de todos os futuros esforços de pesquisa sobre covid longa", opina Daniel Munblit, professor do Imperial College London, que não participou do estudo. "Na ausência de uma definição em consenso sobre covid longa em crianças, os pesquisadores estavam aplicando classificações muito diferentes nos estudos, o que não permitia que os dados fossem coletados e meta-analisados adequadamente. Esse problema, entre muitos outros, limitou nossa compreensão sobre a condição e retardou a pesquisa sobre o tema."
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Inédito
O outro estudo divulgado ontem na revista The Lancet Child & Adolescent Health é o maior já realizado sobre covid longa em crianças e adolescentes. O chamado Clock avaliou os sintomas de 6.804 pessoas com idade entre 11 e 17 anos (3.065 com resultado positivo no teste de PCR e 3.739, negativo). Os pesquisadores descobriram que, nos dois grupos, houve relatos de cansaço, dor de cabeça e falta de ar, entre outros. Porém, a prevalência dessas condições — fossem únicas ou múltiplas — foi maior entre os jovens com covid: 30,5% contra 6,2% no momento do exame.
Três meses depois, 30,3% dos participantes do grupo positivo e 16,2% do negativo apresentaram três ou mais sintomas, sendo que, entre os primeiros, os mais relatados foram cansaço (39%), dor de cabeça (23,2%) e falta de ar (23,4%). A probabilidade estimada de se apresentar múltiplas condições, incluindo as três já citadas, acrescentando-se tontura, foi de 29,6% entre os jovens que tiveram covid e de 19,3% naqueles não infectados.
"A condição pós-covid-19 ocorre em jovens com histórico de infecção confirmada por Sars-CoV-2 e pelo menos um sintoma físico persistente por um período mínimo de duração de 12 semanas após o teste inicial, sendo que esse sintoma não pode ser explicado por um diagnóstico alternativo", afirma Terence Stephenson, pesquisador da Universidade College London e primeiro autor do artigo. "Os sintomas têm impacto no funcionamento diário, podem continuar ou se desenvolver após a infecção por covid-19 e podem flutuar ou provocar recaídas ao longo do tempo", diz.
O estudo Clock também descobriu que tanto as crianças e os adolescentes com covid quanto os que testaram negativo relataram sintomas associados à saúde mental, como insônia e ansiedade, sem diferença estatística significativa entre os dois grupos. Para Stephenson, o fato de jovens com ou sem doença terem apresentado condições físicas e mentais durante a pandemia é um indicativo do quanto essa faixa etária foi afetada pela crise do Sars-CoV-2. "Isso nos leva a concluir que, nos dois grupos, houve uma alta carga de sintomas. O aumento desses sintomas nas crianças com teste negativo sugere um impacto negativo da pandemia sobre todas elas, independentemente da infecção", diz.
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Principais fatores de risco
Um estudo publicado, ontem, na revista Jama, da Associação Médica Norte-Americana, identifica os principais fatores de risco associados à covid grave em crianças. A pesquisa, feita durante a prevalência mundial da variante delta, foi realizada com dados de 167.262 menores de 19 anos que testaram positivo para o coronavírus, sendo que, desses, 10.245 chegaram a ser hospitalizados.
Segundo os autores, ser do sexo masculino, negro, ter obesidade e apresentar condições crônicas complexas pediátricas (como doenças cardiovasculares, neuromusculares e imunodeficiências, entre outros) aumentou o risco de covid grave em crianças e adolescentes. Entre os hospitalizados, 13,9% preencheram o critério de gravidade, 7,8% necessitaram de ventilação mecânica, e 1,3% morreu. A taxa de mortalidade foi compatível com outros dois estudos pediátricos que avaliaram as consequências da infecção pelo Sars-CoV-2 na faixa etária abaixo dos 19 anos, disseram os autores, da Faculdade de Medicina da Universidade do Colorado, em Aurora. O índice, porém, é inferior ao observado entre adultos internados nos mesmos 56 centros de saúde pesquisados: 11,6%.
Os autores do estudo também investigaram a ocorrência de MIS-C (síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica) nos pacientes jovens. Desde o início da pandemia, sabe-se que algumas crianças podem desenvolver a condição autoimune depois da infecção por Sars-CoV-2. "Em comparação com crianças com covid-19 aguda, descobrimos que ser do sexo masculino, negro/afro-americano, menor de 12 anos e não ter comorbidades preexistentes estava associado a maiores risco de diagnóstico de MIS-C. Também descobrimos que a obesidade é um preditor significativo", escreveram os cientistas.