CIÊNCIA ANIMAL

Estudo tenta explicar por que chimpanzés estão aplicando insetos nas feridas

Comportamento foi observado por cientistas no Gabão, na África Central, e indica, entre outras coisas, que esses animais são capazes de agir em benefício de outros indivíduos, o que raramente é visto em não-humanos

Jéssica Gotlib
postado em 09/02/2022 19:22 / atualizado em 09/02/2022 19:22
As três chimpanzés Suzee, Sassandra e Olive vivem no parque nacional de Loango, no Gabão -  (crédito: Projeto de chimpanzé Ozouga/Tobias Deschner/Divulgação)
As três chimpanzés Suzee, Sassandra e Olive vivem no parque nacional de Loango, no Gabão - (crédito: Projeto de chimpanzé Ozouga/Tobias Deschner/Divulgação)

Pesquisadores da Universidade de Osnabrück fizeram uma descoberta “fascinante”, como eles mesmos descreveram. Chimpanzés selvagens da África equatorial usam insetos como medicamento para tratar feridas abertas deles mesmos e uns dos outros. A descoberta foi feita quando um grupo do Projeto Chimpanzé Ozouga observava uma comunidade desses animais no Parque Nacional Loango, no Gabão.

O principal foco da pesquisa, liderada pelo primatologista Tobias Deschner e pela bióloga cognitiva Simone Pika, é entender as relações sociais entre os animais. Assim, eles passaram anos documentando as atividades de caça, uso de ferramentas, habilidades de comunicação, capacidade cognitiva, relações sociais e interações entre grupos dos 45 espécimes que vivem no local.

Foi em uma dessas pesquisas de campo que a então voluntária do projeto, Alessandra Mascaro, notou o uso de insetos. “Em 2019, eu estava seguindo uma chimpanzé fêmea chamada Suzee e observei enquanto ela cuidava do pé machucado de seu filho adolescente, Sia. Percebi que parecia ter algo entre os lábios dela que, em seguida, aplicou no ferimento no pé de Sai”, relata.

Comportamento inédito

Mascaro conta que só depois se deu conta do tamanho do achado feito naquele dia. É comum que animais se automediquem mascando plantas para combater parasitas, por exemplo. Entretanto, a aplicação externa de qualquer material em feridas abertas nunca havia sido documentada por cientistas em espécies não-humanas.

“Mais tarde naquela noite, eu assisti meus vídeos novamente e vi que Suzee tinha primeiro estendido a mão para pegar algo que ela colocou entre os lábios e depois diretamente na ferida aberta no pé de Sia. Discutindo essas observações e a possível função do comportamento com os membros da equipe, percebemos que nunca tínhamos visto tal comportamento e que também nunca havia sido documentado antes”, lembra.

A equipe passou a ficar atenta para buscar padrões semelhantes em outros indivíduos do bando. Uma semana depois, a estudante de doutorado Lara Southern observou um macho adulto, Freddy, fazendo exatamente a mesma coisa que Suzee fez com Sia. Só que, dessa vez, o chimpanzé tratou a si próprio. Os cientistas notaram que os pequenos objetos usados por eles sobre as feridas eram insetos voadores.

A partir de então, cada animal com ferida exposta foi cuidadosamente registrado, o que resultou em uma amostra de 22 eventos de medicação das feridas expostas no período de um ano. O mais comum é que os indivíduos aplicassem os insetos nos próprios machucados, mas também ocorreram novos registros de interação entre os chimpanzés na hora de remediar uns aos outros.

Habilidade social

“Um macho adulto, Littlegrey, tinha uma ferida aberta profunda em sua canela e Carol, uma fêmea adulta, que estava cuidando dele, de repente estendeu a mão para pegar um inseto”, lembrou Southern. “O que mais me impressionou foi que ela entregou para Littlegrey, ele o aplicou em sua ferida e, posteriormente, Carol e outros dois chimpanzés adultos também tocaram a ferida e moveram o inseto sobre ela. Os três chimpanzés não aparentados pareciam realizar esses comportamentos apenas para o benefício do membro de seu grupo”, relatou a pesquisadora.

Para os especialistas, é uma grande demonstração de que os primatas são capazes de desenvolver os chamados comportamentos pró-sociais. Essa classe de ações engloba todo aquele padrão de comportamento voluntário em que um indivíduo tenha a intenção de beneficiar outro, mesmo que isso não gere consequência direta para si mesmo. Isso quer dizer que os chimpanzés estudados podem ser capazes de processo cognitivos que, até então, só tinham sido observados na espécie humana, como a empatia, por exemplo.

“Para mim, interessada nas habilidades cognitivas dos chimpanzés, foi particularmente impressionante testemunhar que os indivíduos não apenas tratam as suas próprias feridas, mas também as de outros indivíduos não aparentados. Tais exemplos de comportamentos pró-sociais claros raramente são observados em espécies não humanas, mas essas observações agora também podem convencer os céticos”, animou-se a doutora Pika.

Benefício farmacológico

O próximo passo da pesquisa é entender se há algum benefício farmacológico na aplicação dos insetos. Para isso, os pesquisadores vão coletar restos dos bichinhos aplicados nas feridas para tentar identificar a espécie exata deles. É possível que haja propriedades anti-inflamatórias ou anti-sépticas, como no caso de espécies usadas para fins similares por comunidades humanas desde 1.400 antes de Cristo.

Outra explicação para o fato é que, mesmo sem propriedades medicinais, o hábito de usar insetos para tapar feridas expostas seja um costume local, como acontece com alguns tratamentos humanos particularmente mais ligados à tradição e a cultura do que a benefícios farmacológicos.

Além de tentar identificar as propriedades químicas do remédio, os pesquisadores também vão se esforçar para diferenciar melhor como o tratamento ocorre nas sociedades. Eles devem procurar saber, por exemplo, se há indícios de padrões entre os indivíduos que aplicam e os que recebem a medicação. Outro ponto a ser pesquisado é o processo de aprendizagem da tradição que permite sua manutenção através das gerações.

“É fascinante ver que, após décadas de pesquisa em chimpanzés selvagens, eles ainda nos surpreendem com novos comportamentos inesperados”, empolgou-se o primatologista Deschner. “Nosso estudo mostra que ainda há muito a explorar e descobrir sobre nossos parentes vivos mais próximos e, portanto, precisamos nos esforçar ainda mais para protegê-los em seu habitat natural”, determinou.

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