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Destruição da Amazônia chegou a quadro irreversível mais rápido do que o previsto

O desmatamento e o aquecimento global levam a floresta a um quadro de incapacidade de regeneração mais rápido do que o previsto, alertam cientistas. Há sinais dessa condição crítica em 75% do bioma, que pode se transformar em uma savana

Vilhena Soares
postado em 08/03/2022 06:00
 (crédito: CARL DE SOUZA)
(crédito: CARL DE SOUZA)

A Floresta Amazônica se aproxima de um estágio de perda da resiliência — a capacidade de se recuperar de danos sofridos — mais rápido do que o estimado. Após uma análise estatística avançada, feita com base em dados colhidos por satélite, um grupo de pesquisadores internacionais detectou sinais dessa incapacidade de regeneração em mais de 75% da floresta, desde o início de 2000. O desmatamento e o aquecimento global são apontados pelo grupo como razões principais desse "ponto de inflexão". Os resultados do trabalho, publicados na última edição da revista especializada Nature Climate Change, mostram ainda que, se medidas de combate à destruição não forem tomadas, esse ecossistema pode se tornar menos rico e diverso, com o risco, inclusive, de se transformar em uma savana ou um cerrado.

No artigo, os autores relatam que a Amazônia, por ser considerada um elemento de extrema importância para o equilíbrio da Terra, já teve a sua vulnerabilidade retratada em diversos estudos, mas ainda não haviam sido conduzidas análises com um número amplo de dados da região e o auxílio de softwares avançados. "Estudos de simulação de computador, que ajudem a entender o futuro dessa área, podem render uma visão ainda mais clara do real estado dessa região", detalha, em comunicado, Niklas Boers, pesquisador da Universidade Técnica de Munique e um dos autores do estudo.

Boers e seus colegas usaram modelos de análises ambientais, chamados "indicadores de estabilidade", que já foram considerados em estudos de outras regiões do globo, como a camada de gelo da Groenlândia. "Esses dados estatísticos visam prever a aproximação de um sistema em direção a uma mudança abrupta, sem chances de recuperação", explicam. A análise teve como base dados de sensoriamento remoto por satélite colhidos na Amazônia entre 1991 e 2016, com foco na profundidade óptica por vegetação.

Esse parâmetro mede a radiação de micro-ondas emitida pelas árvores, ou seja, a quantidade de entrada de raios solares que conseguem entrar na floresta. Conforme o tamanho da fauna, a profundidade óptica aumenta ou diminui. "Vimos uma redução contínua da resiliência da floresta tropical desde o início dos anos 2000 (…) Constatamos que cerca de 75% da Amazônia apresenta alguma perda de resiliência", relata Chris Boulton, um dos autores do estudo e pesquisador do Global Systems Institute, pertencente à Universidade de Exeter, no Reino Unido.

Ação humana

A equipe também observou que a perda de resiliência é acentuada em áreas mais próximas à presença humana (zonas urbanas e plantações), assim como naquelas que recebem menos chuvas. A região tem sofrido com secas severas nas últimas décadas, desencadeadas pelas mudanças climáticas. Segundo os pesquisadores, sozinho, o aquecimento global poderia empurrar a floresta amazônica para a transformação em savana. "Mas, obviamente, não é apenas a mudança climática. As pessoas estão cortando ou queimando a floresta, que é um segundo ponto de pressão. Esses dois fatores interagem. Então, há preocupações de que a transição ocorra ainda mais cedo", enfatiza Tim Lenton, também autor do estudo e pesquisador da Universidade de Exeter, em entrevista à Agência France-Presse (AFP) de notícias.

A transformação da Bacia Amazônica em savana pode gerar uma série de consequências preocupantes, tanto regionais quanto globais, também alertam os autores do estudo. Com esse cenário, cerca de 90 bilhões de toneladas de CO2 — o dobro das emissões globais anuais de todas as fontes combinadas — poderiam ser liberadas na atmosfera, acentuando o aquecimento global. "A Floresta Amazônica abriga uma variedade única de biodiversidade, influencia fortemente as chuvas em toda a América do Sul por meio de sua enorme evapotranspiração e armazena enormes quantidades de carbono", detalha Boers. "Se perdermos o seu papel no ciclo das chuvas, teremos consequências sérias principalmente para o centro do Brasil, o coração agrícola do país."

Para os autores, há uma pequena chance de reverter esse cenário. "Se pudermos baixar a temperatura novamente, mesmo depois do ponto de inflexão, talvez, poderemos mudar as coisas", afirma Lenton. "Isso confirma que limitar fortemente a extração de madeira, mas também limitar as emissões globais de gases de efeito estufa, é necessário para proteger a Amazônia.

No Brasil

Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), foi um dos primeiros especialistas a alertar quanto à perda de resiliência da Amazônia. No início da década de 1990, o climatologista mostrou, em diversos estudos de modelagem, que a aceleração do desmatamento combinada com o aquecimento global, poderia fazer com que a região perdesse a sua biodiversidade. "Isso tudo é fruto de uma maior mortalidade de árvores e de um ecossistema muito degradado, principalmente na região sul e sudeste da Amazônia", afirma. "É um cenário cada vez mais preocupante. Já vemos isso, por exemplo, na ampliação dos períodos de seca da floresta, que aumentaram em quatro semanas ao longo das últimas décadas."

O pesquisador brasileiro também frisa que o estudo divulgado ontem não avaliou dados recentes de desmatamento, que atingiu níveis recordes desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência do país. Segundo Nobre, isso pode significar um cenário ainda mais assustador para a floresta. Assim como no artigo, ele destaca que a situação crítica na Amazônia só poderá ser revertida com um trabalho intenso. "Os autores falam em reduzir o desmatamento como a melhor medida, mas, em uma análise recente divulgada na última edição da Conferência do Clima, a COP26, vimos, em uma revisão de uma série de estudos, que, para que isso aconteça, é necessário cessar toda essa destruição florestal até 2030, além de restaurar as áreas mais atacadas, como no sul e sudeste", afirma. "Isso é um trabalho que deve ser feito não só pelo Brasil, mas por todas as outras regiões que compõem a floresta."

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Sob extremos

"Esse estudo nos traz mais evidências sobre o perigo que a Amazônia está correndo. Muitas pessoas acreditam que ela consegue se recuperar, que há muita área de floresta ainda. Na realidade, não é bem assim. Essa região é um sistema complexo e, hoje em dia, existe muita pressão em cima dela, com efeitos humanos diretos e indiretos. É o caso das mudanças climáticas, por exemplo, que geram prejuízos a todos os seus serviços ecossistêmicos e a sua biodiversidade. Com mais eventos extremos de maior intensidade, uma ação humana também intensificada, o avanço do desmatamento e a exploração madeireira descontrolada, esse cenário só piora. Todas essas ações diminuem ainda mais a resiliência da floresta."

Ane Alencar, diretora de Ciência Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam)

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