Ao longo de dezenas de anos, projetos espaciais trouxeram milhares de imagens e materiais tirados de Marte. Nunca, um som. A missão Perseverance, da agência espacial americana (Nasa), pôs fim a esse silêncio. Microfones presos ao rover registraram os ruídos do gigante vermelho durante mais de um ano. E as primeiras gravações revelam um ambiente tranquilo, onde o som circula lentamente e em duas velocidades distintas. Detalhes do trabalho foram divulgados na última edição da revista Nature.
No artigo, os autores explicam que registros acústicos feitos fora da Terra têm potencial para decifrar a origem dos sons e revelar detalhes relacionados à atmosfera pela qual eles viajam. No caso de Marte, porém, alguns "tropeços" dificultaram esse tipo de estudo. "Missões anteriores tentaram gravar o som, mas falharam. Por exemplo, o microfone da Mars Polar Lander foi perdido ao entrar na atmosfera do planeta, e o da espaçonave Phoenix sofreu com dificuldades técnicas", relatam.
O robô Perseverance, que circula há pouco mais de um ano em Marte, venceu os entraves. Os primeiros sons foram registrados em 9 de fevereiro de 2021, um dia após a sua chegada. Sob o som estridente do veículo, uma rajada de vento pode ser claramente percebida. Esses ruídos estão dentro do espectro audível humano, entre 20Hz e 20kHz, e revelam que o planeta está quieto — tão quieto que, em várias ocasiões, os cientistas pensaram que o microfone não estava mais funcionando.
Um total de 4 horas e 40 minutos de sons foram analisados, incluindo as turbulências do ar causadas pelo vento, além de faíscas produzidas pelo laser do rover enquanto ele quebrava rochas, material a ser usado em estudos sobre a química do planeta. O dispositivo fica anexado ao helicóptero Ingenuity, que acompanha o Perseverance nos passeios por Marte, e ajudou a equipe a perceber uma peculiaridade acústica do planeta: lá, diferentemente da Terra, sons agudos e dos sons graves viajam em velocidades diferentes.
"Com esse instrumento específico, que emite uma espécie de 'clack clack', tínhamos uma fonte sonora muito bem localizada, entre dois e cinco metros de distância do seu alvo, e sabíamos exatamente quando ele ia disparar", explica Sylvestre Maurice, principal responsável pela sistema de captação de som instalado no robô e pesquisador da Universidade de Toulouse, na França. "Todo esse sistema de captação revelou sons até então desconhecidos pelos astrônomos."
Mais lento
Primeiro, o grupo detectou que a velocidade do som é mais lenta em Marte, a 240m por segundo, em comparação com 340m na Terra. O fenômeno era previsível, considerando que a atmosfera marciana contém 95% de dióxido de carbono, em comparação com 0,04% na Terra, o que faz com que o som se mova muito mais lentamente através dela. "A atmosfera de Marte faz com que o som seja abafado, na ordem de cerca de 20 decibéis, em relação ao nosso planeta", comparam os autores no estudo.
Porém, com o laser do Infinity, as medições apontaram uma velocidade diferente: 250m por segundo. "Entrei um pouco em pânico. Disse a mim mesmo: 'Uma das duas medições é falsa, porque, na Terra, perto da superfície, o som só tem uma velocidade'", conta Maurice. Os resultados foram confirmados repetidamente, e a equipe chegou à conclusão de que os agudos do laser tinham uma velocidade, e os graves das pás do helicóptero, outra.
"Essa diferença quer dizer que os agudos se perdem muito rapidamente, mesmo em curta distância. Nesse cenário, uma conversa entre duas pessoas seria difícil mesmo a cinco metros de distância (...) Na Terra, os sons de uma orquestra chegam até você ao mesmo tempo, sejam eles graves ou agudos. Em Marte, se você estiver um pouco longe da cena (...) o intervalo (entre os sons) pode ser fenomenal", ilustram especialistas do Centro Nacional Francês de Pesquisa Científica, ao comentarem o artigo.
Vigilância
Segundo a Nasa, estudar os sons gravados pelos microfones do rover também ajudará seus cientistas e engenheiros a avaliarem a "saúde" do Perseverance, identificando possíveis problemas no funcionamento do robô. "O microfone, agora, é usado, várias vezes ao dia, com esse objetivo e funciona extremamente bem. Seu desempenho geral é melhor do que o que modelamos e testamos em um ambiente semelhante à Marte na Terra", conta David Mimoun, professor do Instituto Superior de Aeronáutica e Espaço, na França, e um dos autores do estudo.
Para o grupo, os dados já obtidos e medições futuras poderão ajudar a entender melhor as mudanças na atmosfera do planeta e outros segredos marcianos. "A análise nos permitirá também 'afinar' os nossos modelos digitais de previsão climática e meteorológica", diz Thierry Fouchet, pesquisador do Observatório de Paris.
Há também a expectativa de que Vênus e Titã (maior satélite de Saturno) sejam os próximos alvos de pesquisas acústicas espaciais. "É um novo tipo de investigação, que nunca havíamos feito em Marte. Espero que venham muitas descobertas com base nesse tipo de análise", diz Maurice.
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