Auxiliar a comunicação entre a mãe e o feto e evitar, ao máximo, que o bebê em formação não sofra prejuízos são as funções principais da placenta. Porém, não são completamente conhecidos os mecanismos ligados a esses processos, o que tem aguçado a curiosidade dos cientistas e aberto a possibilidade de novas funções para o órgão. Pesquisas recentes indicam, por exemplo, que a placenta secreta proteínas que podem evitar o desenvolvimento do diabetes tipo 2 e proteger crianças da infecção pelo novo coronavírus. "Falhas" também têm sido descobertas, como a dificuldade de blindar os pequenos de plásticos, metais e outras partículas tóxicas.
Um dos estudos, conduzido no Japão, busca investigar a possibilidade de a placenta evitar o desenvolvimento de problemas metabólicos. Segundo a equipe do Instituto Interdisciplinar de Ciências de Fronteira da Universidade de Tohoku, essa tem sido uma preocupação constante na área médica, já que os índices de obesidade têm aumentado em todo o mundo. "Mais de 30% das mulheres em idade fértil nos países ocidentais e asiáticos sofrem com esse problema de saúde. Com isso, um ciclo preocupante está se formando, em que os riscos de diabetes são transmitidos de geração em geração. Parar esse ciclo é um problema médico crítico e urgente", afirma Joji Kusuyama, um dos autores do estudo, publicado na revista Diabetes.
Kusuyama e sua equipe buscaram respostas em um experimento com roedores. Eles compararam fêmeas de camundongos que, durante a gestação, realizaram ou não exercícios físicos. Observaram que, no primeiro grupo, a proteína chamada supuroexide dismutase 3 (SOD3), derivada da placenta, desempenhou um papel fundamental na transmissão dos benefícios das atividades físicas para os fetos mesmo quando os fêmeas estavam acima do peso ou tinham diabetes tipo 2. "A SOD3 ativa substâncias que são responsáveis por gerar um melhor equilíbrio do metabolismo, e isso impede que os efeitos negativos da obesidade sejam passados de mãe para filho", detalham os autores.
Segundo o grupo, a proteína estimula fatores químicos que impedem o surgimento de anormalidades induzidas por uma dieta rica em gordura, como alterações na produção de glicose da prole. Considerando o tamanho benefício e a simplicidade em obtê-lo, os autores defendem que as grávidas sejam incentivadas a realizar atividades físicas. "Podem haver ainda mais ganhos relacionados a SOD3, mas precisamos observar mais a fundo os tecidos placentários e partir para análises em humanos. Mas a recomendação de atividade física é algo que já deve ser seguido pelas gestantes", indicam.
Na avaliação de Julia Verano, ginecologista e obstetra da Clínica Renoir, o estudo japonês traz resultados interessantes, mesmo sendo um trabalho inicial. "Apesar de ter sido desenvolvida ainda em animais, essa pesquisa se torna promissora devido às expectativas de semelhança com a raça humana", diz. A especialista conta que, nas últimas décadas, o conhecimento sobre a placenta tem se aprofundado, e há uma demanda crescente para entendê-la ainda mais. " As famílias estão interessadas e preocupadas com a sua prole e o futuro reprodutivo. Dessa forma, saber o que influencia no feto é de suma importância. Assim, podemos atuar preventivamente, por exemplo", justifica.
A médica acredita que os resultados também reforçam a importância de as mulheres se movimentarem durante a gravidez. "Como obstetra, incentivo sempre a prática de atividade física, alimentação saudável, acompanhamento psicológico e multidisciplinar durante o pré-natal. Cada uma dessas práticas é fundamental e exerce papel único para o melhor desfecho da gestação", enfatiza.
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Receptor-chave
Também curiosos em relação aos mecanismos de defesa da placenta, pesquisadores dos Estados Unidos resolveram avaliar como ela protege os bebês do Sars-CoV-2, o vírus da covid-19. "Embora o novo coronavírus afete significativamente muitas mulheres grávidas, as taxas de transmissão da mãe para o bebê durante a gravidez são muito baixas. Nosso objetivo foi tentar entender as causas disso", relata os autores do estudo, publicado na última edição da revista American Journal of Pathology.
Para isso, a equipe da Universidade de Boston coletou placentas de mulheres que deram à luz entre julho de 2020 e abril de 2021 e as dividiu em dois grupos. O primeiro foi formado por voluntárias que tiveram gestações sem complicações e relato de infecção pelo Sar-CoV-2. O segundo, por mulheres que testaram positivo para o coronavírus e tiveram casos ativos da covid-19, com sintomas.
Por meio de análises detalhadas, o grupo quantificou os receptores da ACE-2, que permitem a entrada do novo coronavírus nas células humanas, nas amostras colhidas. Constatou-se que esse receptor é encontrado em níveis mais baixos nas placentas de grávidas com covid-19, quando comparadas às não infectadas. "Acreditamos que, quando uma mulher tem essa enfermidade na gravidez, a placenta está eliminando o ACE-2 como forma de impedir que o Sars-CoV-2 passe para o feto", explica, em comunicado à imprensa, Elizabeth S. Taglauer.
A cientista chama atenção para o fato de a placenta apresentar muitas semelhanças com o pulmão, o que reforça a necessidade de mais investigações sobre um possível papel protetivo contra o novo coronavírus. "A placenta é uma das poucas 'histórias de sucesso' da pandemia. Se compreendermos totalmente como ela protege naturalmente os bebês da covid-19, isso pode fornecer informações importantes para terapias e estratégias futuras, ações que ajudem a impedir que essa e outras infecções continuem a se espalhar", diz.
Marta Rocha, médica neonatologista e pediatra do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, e diretora da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (Fepecs), conta que a placenta é considerada uma "caixa- preta" da gravidez. "Quando avaliamos seu tecido, vemos uma espécie de histórico da gestação", diz. A hipótese de ela ser parecida com pulmão, segundo a especialista, abre as portas para novas investigações. "É algo muito intrigante, principalmente quando estudamos os vírus que também atingem o sistema respiratório. Saber como essas defesas são ativadas é essencial para entender e lidar com uma série de enfermidades."
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Ameaças tóxicas
Mesmo tendo uma função protetiva, a placenta não consegue evitar que alguns elementos poluentes cheguem aos fetos, segundo cientistas americanos. Eles avaliaram se nanopartículas feitas de dióxido de titânio, que estão presentes em produtos farmacêuticos comuns, como protetores solares, e equipamentos esportivos poderiam atravessar o corpo de grávidas. A análise foi feita em camundongos e teve resultados preocupantes.
Ao rastrear o movimento das pequenas partículas pelo corpo das cobaias, a equipe detectou que, em alguns casos, o material tóxico se espalha pelo corpo. "Usando algumas técnicas especializadas, encontramos evidências de que essas partículas inaladas pelo ar podem migrar do pulmão para a placenta e, possivelmente, para os tecidos fetais após a exposição materna durante a gravidez. A placenta não atua como barreira a essas partículas. Nem os pulmões", afirma, em comunicado, Phoebe Stapleton, professora-assistente da Universidade Rutgers e uma das autoras do estudo.
A equipe conduziu a pesquisa interessada em investigar de que forma a placenta estaria ligada ao baixo peso de bebês ao nascer. Há uma suspeita de que a exposição a partículas poluentes causa inflamações que afetam os sistemas corporais, como o fluxo sanguíneo no útero, o que pode inibir o crescimento do feto. "Agora que sabemos que as nanopartículas migram dos pulmões da mãe para a placenta e tecidos fetais, temos mais argumentos que reforçam essa possibilidade", diz Stapleton.
Segundo Tatianna Ribeiro, ginecologista e obstetra da clínica Rehgio, em Brasília, a presença de nanopartículas poluentes na placenta já foi relatada em estudos anteriores (Leia Para saber mais). O estudo americano, porém, traz de forma detalhada todo o processo feito pelas partículas poluentes até ultrapassar essa barreira de proteção. "Nesse estudo, vemos que os pulmões também falham ao filtrar essas moléculas, e essas informações são muito importantes porque a invasão pode gerar um comprometimento da saúde fetal", enfatiza.
Para a médica, esses dados podem ser usados como base para novas pesquisas que ajudem a minimizar esses riscos aos bebês. "Há muitos especialistas da área biomédica que têm trabalhado em medicamentos nanotecnológicos. O objetivo é fazer com que esses remédios também ultrapassem essas barreiras e entreguem drogas protetivas ao feto, impedindo possíveis complicações às crianças, como o baixo peso", diz.
Também microplásticos
Em 2020, em um estudo publicado na revista Environment International, investigadores italianos avaliaram placentas de quatro mulheres saudáveis que tiveram gestações e partos normais. Eles encontraram partículas microscópicas de plástico nas amostras de todas as participantes. A pesquisa foi a primeira a revelar o fenômeno.
"Uma vez que o papel da placenta é crucial no desenvolvimento do feto, a presença de materiais tóxicos é um motivo de grande preocupação", destacaram, à época, os autores no estudo, liderados por Antônio Ragusa, chefe do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital Fatebenefratelli, na Itália.