Covid-19

Pandemia fez cair número de consultas de pacientes com doenças cardiovasculares

Pandemia leva a uma queda "substancial" nos atendimentos de pacientes com complicações cardiovasculares, como o infarto. O primeiro estudo global sobre o fenômeno mostra, ainda, que o cenário é pior em países de renda média e baixa

Correio Braziliense
postado em 31/05/2022 06:00
 (crédito: AFP / SEBASTIEN BOZON)
(crédito: AFP / SEBASTIEN BOZON)

Os danos da pandemia da covid-19 na saúde do coração estão entre as principais preocupações dos profissionais da área. Isso porque algumas complicações cardiovasculares podem ser incapacitantes e fatais. Cientistas britânicos divulgam hoje um panorama que justifica o estado de alerta. Depois de analisar dados de 48 países, coletados entre dezembro de 2019 e dezembro de 2021, eles constataram um "declínio global substancial" nos atendimentos hospitalares de casos de infarto, insuficiência cardíaca e outros problemas do tipo.

Sem medidas de mitigação, avaliam os investigadores, o cenário de interrupção na assistência médica terá desdobramentos que devem nos acompanhar "por um longo tempo." "A doença cardíaca é o assassino número um na maioria dos países, e a análise mostra que, durante a pandemia, em todo o mundo, as pessoas não receberam os cuidados cardíacos que deveriam ter recebido. Isso terá ramificações", alerta Tamesh Nadarajah, pesquisador clínico da British Heart Foundation, na Universidade de Leeds, e principal autor do artigo, publicado no European Heart Journal.

De forma geral, houve queda de 22% no número de pessoas com ataque cardíaco grave (quando uma das artérias que atendem o coração está completamente bloqueada) atendidas em hospitais, e de 34% daquelas em quadros menos graves (quando a artéria está parcialmente bloqueada). O número de cirurgias também diminuiu: em média, 34%. E quem procurou uma unidade de saúde esperou por 69 minutos a mais para ser atendido, se comparado ao período anterior à crise sanitária (veja quadro).

Uma das análises feitas pelos britânicos é de que, como o número de complicações cardíacas não caiu, houve, na verdade, um aumento no número de pessoas morrendo em casa ou nas comunidades. Dentro das unidades de saúde, o número de óbito também cresceu, principalmente em países de média e baixa renda, onde, segundo os autores, hospitais e clínicas nem sempre puderam oferecer os tratamentos considerados padrão-ouro.

Nadarajah lembra que, em casos de complicações cardiovasculares, a espera por atendimento ou a oferta de uma terapia pouco eficaz pode ter graves consequências. "Quanto mais as pessoas esperam pelo tratamento para um ataque cardíaco, maior o dano ao músculo cardíaco, causando complicações que podem ser fatais ou causar problemas crônicos de saúde", detalha. O levantamento indica um aumento de 17% nos óbitos por qualquer causa entre pacientes hospitalizados após infarto ou insuficiência cardíaca.

Subnotificações

As informações analisadas fazem parte de 189 trabalhos de pesquisa sobre os impactos da covid-19 nos serviços cardiovasculares de 48 países, distribuídos em seis continentes. Segundo a equipe britânica, esse retrato é a primeira avaliação global da maneira como profissionais do ramo atuaram na crise sanitária. Para isso, eles investigaram as pesquisas e uma gama de serviços cardíacos, como hospitalizações, gerenciamento de doenças, procedimentos de diagnóstico, consultas ambulatoriais e taxas de mortalidade.

Ainda assim, o grupo avalia que falta um retrato mais fidedigno das regiões em que o problema é mais crítico. Como os dados de países de baixa e média renda são escassos, os pesquisadores acreditam que os levantamentos e os estudos nesses locais podem subestimar a verdadeira extensão do impacto da interrupção dos atendimentos em função da covid-19.

Na avaliação de Samira Asma, diretora-geral assistente de Dados, Análises e Entrega de Impacto na Organização Mundial da Saúde (OMS), o estudo mostra como o ônus da pandemia afeta o planeta de forma desproporcional. "Suspeitamos que isso aumentará a desigualdade nos resultados de saúde dos cuidados cardíacos entre países de alta renda e de baixa e média renda, onde 80% da população mundial vive. Isso ressalta a necessidade de uma cobertura universal de saúde e de acesso a cuidados de qualidade, ainda mais durante a pandemia", defende a também autora do estudo.

No início deste mês, a agência das Nações Unidas divulgou estimativas referentes ao excesso de mortes associadas à pandemia da covid-19 — análise que incluiu pessoas que não tiveram acesso à prevenção e ao tratamento de doenças cardiovasculares devido à sobrecarga dos sistemas de saúde. Durante 2020 e 2021, a OMS calculou que ocorreram, no mundo, 14,9 milhões de óbitos em excesso.

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Raios X

A análise considera dados de 48 países colhidos entre dezembro de 2019 e dezembro de 2021. Confira alguns resultados:

Queda de…

– 22% em pessoas com ataque cardíaco grave atendidas em hospital
– 34% em pessoas com forma menos grave de ataque cardíaco atendidas em hospital
– 34% das operações cardíacas

Aumento de…

– 17% das mortes por qualquer causa entre pacientes hospitalizados após um ataque cardíaco grave ou insuficiência cardíaca,
– 69 minutos na espera por assistência médica após o início dos sintomas de um ataque cardíaco grave

Possível acúmulo de danos

 (crédito: British Heart Foundation/Divulgação )
crédito: British Heart Foundation/Divulgação

A avaliação da equipe da Universidade de Leeds é de que a interrupção dos serviços cardiovasculares deixará um legado que exigirá ação imediata por parte dos administradores de saúde. "Danos cardiovasculares colaterais de diagnósticos perdidos e tratamentos atrasados continuarão a se acumular, a menos que estratégias de mitigação sejam implementadas rapidamente", defendem os pesquisadores.

Para o professor Chris Gale, cardiologista e autor sênior do estudo, as repercussões da pandemia nos cuidados e na saúde cardiovascular estarão "conosco por um longo tempo". "Há poucas dúvidas de que continuarão a haver mortes e doenças que não teriam ocorrido de outra forma. São necessárias ações urgentes para lidar com essa carga de doenças cardiovasculares deixadas na sequência da pandemia", justifica.

Diretor executivo de Programas Cardiovasculares de Intervenção do Brigham and Women's Hospital, Deepak L Bhatt concorda. "Essa análise realmente traz à luz o impacto substancial que teve e continuará a ter a pandemia da covid-19 na saúde cardiovascular globalmente", diz o especialista.

Efeito covid

Há ainda o risco de a infecção pelo novo coronavírus deixar os pacientes com a saúde cardiovascular comprometida. Um estudo da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, mostra que recuperados da covid-19 têm o risco acentuado de serem acometidos por ao menos 20 problemas cardiovasculares ao longo de um ano após a infecção.

Entre as complicações, estão distúrbios cerebrovasculares, arritmias, cardiopatia isquêmica e não isquêmica, pericardite, miocardite, insuficiência cardíaca e doença tromboembólica. Esses indivíduos são, por exemplo, 52% mais propensos a terem um acidente vascular cerebral, o popular derrame. Em casos de insuficiência cardíaca, o risco aumenta 72%.

A análise com dados de 153.760 indivíduos mostrou, ainda, que até aqueles que apresentaram quadros leves da covid-9 podem estar mais vulneráveis, sendo que os riscos são mais acentuados entre aqueles que sofreram quadro críticos da doença, como a necessidade de tratamento intensivo. " As vias de atendimento dos que sobrevivem ao episódio agudo da covid devem incluir atenção à saúde e doença cardiovascular", defendem os autores do estudo, publicado em fevereiro na revista Nature.

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