inovação médica

Fígado é tratado fora do corpo e depois transplantado para homem

Colocado em uma máquina, órgão teve lesão curada durante três dias para ser recebido por um homem de 62 anos. Hoje, o tempo extracorpóreo limite para cirurgias é de 12 horas. Técnica criada na Suíça poderá reduzir o tempo de espera por doadores

Cientistas da Universidade de Zurique, na Suíça, conseguiram preservar um fígado humano por três dias fora do corpo, tratar o órgão de uma lesão e transplantá-lo, com sucesso, em um homem com problemas hepáticos. Relatada na última edição da revista especializada Nature Biotechnology, a façanha poderá ajudar a aumentar o número de órgãos elegíveis para transplante, reduzindo, assim, as filas de espera por um doador compatível.

O fígado utilizado no procedimento pertencia a uma mulher de 29 anos e havia sido rejeitado por todos os outros centros especializados por apresentar uma lesão. De acordo com os responsáveis pela cirurgia, a análise desse dano duraria no mínimo 24 horas, mais do que a janela máxima atual permitida entre a retirada de um órgão e a realização do transplante. Em circunstâncias normais, os órgãos doados só podem ficar fora do organismo humano por 12 horas, em recipientes com gelo ou em máquinas de perfusão — dispositivo que ajuda a conservá-los por imitar o ambiente intracorpóreo.

Para driblar essas limitações, os especialistas utilizaram uma nova versão dessa máquina que funciona a partir da técnica chamada perfusão normotérmica ex situ. A tecnologia foi responsável por testes bem-sucedidos em janeiro de 2020, quando, pela primeira vez, manteve um fígado vivo fora do corpo humano por vários dias, monitorando suas alterações minuciosamente. Com ela, o órgão é suprido com um sangue substituto sob a mesma pressão e temperatura corporal. A máquina também move o órgão ao ritmo da respiração humana e monitora a produção de bile.

No caso da terapia experimental descrita na Nature Biotechnology, para tratar a lesão que existia no órgão, o dispositivo forneceu ao fígado antibióticos e um medicamento antifúngico. Depois, o órgão foi transplantado, em maio de 2021, em um homem de 62 anos que tinha várias doenças hepáticas graves, incluindo cirrose avançada e hipertensão portal grave — um aumento na pressão arterial em um vaso que transporta sangue do intestino e do baço para o fígado.

Três dias depois da cirurgia, o órgão já funcionava normalmente. O paciente usou imunossupressores para afastar o risco de infecção no pós-operatório e recebeu alta hospitalar 12 dias após a operação, retomando totalmente a qualidade de vida. Em uma avaliação feita um ano depois, os médicos não encontraram sinais de dano hepático, lesões ou rejeições. "Devido a minha enfermidade em rápida progressão, eu tinha poucas chances de obter um fígado da lista de espera dentro de um período de tempo razoável. Estou muito grato", declarou o receptor, que não teve o nome divulgado, em comunicado da universidade suíça.

Pierre-Alain Clavien, diretor do Departamento de Cirurgia e Transplante Visceral do Hospital Universitário de Zurique e um dos responsáveis pelo trabalho, também comemora os resultados obtidos. "Nossa terapia mostra que, ao tratar fígados na máquina de perfusão, é possível recuperar o seu funcionamento e salvar vidas."

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"Revolução"

Apesar das boas expectativas, os autores ponderam que mais procedimentos precisam ser feitos até que a tecnologia chegue aos centros cirúrgicos. Para eles, os resultados obtidos até agora sugerem que a nova abordagem pode aumentar o número de potenciais doadores de órgãos. "Nos Estados Unidos, 70% dos fígados de doadores não são usados. Se podemos resgatar esses 70%, não sabemos, mas é emocionante saber que temos uma forma de tentar reaproveitá-los. As pessoas estão morrendo na fila de espera", afirma Clavien.

Na avaliação do cientista, ele e os colegas criaram uma tecnologia que "revoluciona" o tratamento de distúrbios hepáticos. "A prova é o paciente: ele está aqui e sabe como era antes", justifica. Mark Tibbitt, professor de engenharia macromolecular e um dos autores do trabalho, também aposta no uso da técnica para além dos transplantes de fígado. "A abordagem interdisciplinar para resolver desafios biomédicos complexos é o futuro da medicina. Isso nos permitirá descobrir novas vias terapêuticas, contribuindo ainda mais para o tratamento de pacientes."

Na opinião de Andre Watanabe, cirurgião geral e especialista em transplante de fígado do Centro de Excelência em Doenças do Fígado do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, a terapia experimental demonstra o impacto que os avanços tecnológicos podem ter nos cuidados médicos. "As 12 horas viram uma janela ainda mais apertada quando temos outras questões em jogo, como o transporte do órgão de uma cidade para outra. Com essa nova tecnologia, é possível aumentar esse período de espera e monitorar o órgão", diz.

A possibilidade de reduzir a quantidade de órgãos que não são aproveitados também é enfatizada pelo médico brasileiro. "Hoje, acabamos deixando de utilizar um órgão por pequenos detalhes, como ele ser de um doador mais velho ou ter excesso de gordura, por medo de ele não funcionar corretamente", ilustra. "Se pudermos ter a segurança proporcionada por essa tecnologia, as chances de funcionar aumentam, e, com certeza, mais pessoas poderão ser beneficiadas."