Possessão demoníaca, hereditariedade e relacionamentos patológicos foram algumas das causas apontadas, no passado, para a esquizofrenia. O desconhecimento sobre a doença levou a tentativas fracassadas, e, muitas vezes, torturantes, de tratamento, incluindo fazer furos no crânio (trepanação), induzir os pacientes ao coma, dar choques elétricos sem anestesia nem controle rigoroso da voltagem e confiná-los em hospícios.
Hoje, embora a origem da esquizofrenia não tenha sido completamente decifrada, há um conhecimento bem mais amplo da biologia por trás do distúrbio. Se, por um lado, é uma boa notícia, já que entender a doença pode levar ao desenvolvimento de terapias mais eficazes, por outro, os estudos estão revelando um cenário bastante complexo e, por isso, desafiador.
Já se sabia, por exemplo, que há genes envolvidos no risco da patologia. Porém, neste ano, o maior consórcio mundial de pesquisa genética psiquiátrica descobriu que o número deles é bem maior do que o imaginado. Anteriormente, o mesmo grupo havia identificado 108 regiões do DNA associadas à doença. Agora, são 287, com 120 proteínas relacionadas.
Fruto da colaboração de pesquisadores de 45 países, o estudo incluiu dados de 76.755 pessoas com esquizofrenia e 243.649 sem a doença, para fins de comparação. No Brasil, foram 600 voluntários, número que deve aumentar futuramente, pois a pesquisa continua, para incluir perfis genéticos mais diversificados. O mapeamento foi publicado em dois artigos científicos na revista Nature.
Cérebro
O peso da genética na esquizofrenia ainda não foi totalmente esclarecido, mas, com a publicação recente, os cientistas conseguiram avançar nas pistas sobre os mecanismos biológicos associados. Individualmente, as variantes comuns identificadas pela técnica de associação genômica ampla (Gwas) contribuem pouco para o risco aumentado da doença: menos de 5%. Porém, uma das forças do trabalho do consórcio foi encontrar pistas de como essas variações agem nas causas do mal. Além disso, os cientistas descobriram alterações em 10 proteínas raras que, de acordo com eles, conferem um "risco substancial" aos portadores.
"A pesquisa mostrou que o risco genético da esquizofrenia está bastante associado a genes concentrados nos neurônios, sugerindo que o papel biológico dessas células é crucial para o desenvolvimento da doença", explica Sintia Belangero, professora da Escola Paulista de Medicina (EPM-Unifesp) e coautora do trabalho, que foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). "Focar nesses genes especificamente pode nos auxiliar a desenvolver novas terapias", destaca.
Além dos neurônios, estudos têm demonstrado a participação de outros grupos celulares nas causas da esquizofrenia. Há quase duas décadas pesquisando o tema, o biólogo Daniel Martins-de-Souza, professor de bioquímica da Universidade de Campinas (Unicamp), destaca a importância das chamadas células da glia, também no cérebro, para o desenvolvimento da doença. Particularmente, dos oligodendrócitos.
De acordo com o cientista, acredita-se que variantes genéticas produzam alterações nessas células ainda na fase embrionária. "Se os oligodendrócitos não amadurecem direito, eles não desempenham o papel deles, que é fazer a bainha de mielina", diz. "No cérebro, temos a produção de impulsos elétricos, e a bainha de mielina é como se fosse uma capinha dos fios. Se uma pessoa tem um problema no encapamento do fio, os neurônios não vão conversar direito. Então, temos um problema neuronal, mas que vem do fato de o oligodendrócito não estar funcionando bem." Estudos de imagem já demonstraram a deficiência dessas células em pacientes de esquizofrenia, diz Martins-de-Souza.
Canabidiol
Pesquisas lideradas pelo cientista, que têm como alvo as células da glia e os neurônios, indicam que o canabidiol (CBD) consegue atacar em várias frentes, tornando-se uma alternativa aos antipsicóticos obsoletos. Atualmente, a base farmacológica do transtorno são medicamentos desenvolvidos na década de 1950, cujos efeitos colaterais fazem com que muitos pacientes abandonem o tratamento. Devido aos bons resultados obtidos em pacientes de uma série de doenças neurológicas, a substância não psicoativa isolada da cannabis sativa (a maconha) pode ser promissora, afirma o biólogo. "O canabidiol não tem sido usado, ainda, para tratar esquizofrenia, mas, frente ao que ele demonstra quando empregado em outras desordens neurológicas, resolvemos estudá-lo no contexto da doença."
Os pesquisadores desenvolveram um modelo, in vitro, de células com as características idênticas das encontradas no cérebro de pacientes de esquizofrenia. Então, trataram os tecidos com o CBD e com os antipsicóticos comuns, para comparar os efeitos das substâncias. "É justamente nas peculiaridades do canabidiol que pode estar um benefício de fato", diz. "A esperança é que, por conta dos processos biológicos que o canabidiol modula, ele possa ir além do que os antipsicóticos fazem."
Na esquizofrenia, os antipsicóticos tratam os sintomas chamados positivos (alucinações, delírios, pensamentos desordenados, distúrbios no movimento), mas não os negativos, como o isolamento social. Nos estudos conduzidos por Martins-de-Souza, o CDB foi capaz de tratar não apenas as disfunções associadas aos neurônios, mas também àquelas identificadas nos oligodendrócitos. Embora as pesquisas ainda estejam em fase inicial, o pesquisador destaca que a abordagem parece promissora.
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Alterações no sistema vascular
Além do sistema nervoso, o vascular pode desempenhar um importante papel no desenvolvimento da esquizofrenia, segundo um estudo liderado pela Universidade do Chile, em parceria com o Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino (Idor), no Brasil. Publicada na revista Molecular Psychiatry, a pesquisa abre uma janela para novos tratamentos farmacológicos, segundo os autores.
A descoberta dos cientistas é que, na doença, existem alterações em proteínas-chave que agem simultaneamente no sistema neurovascular. Essas mudanças ocorrem ainda na fase intrauterina. Para estudar a hipótese, os cientistas utilizaram células-tronco pluripotentes induzidas — retiradas de um organismo adulto e manipuladas para voltar ao estágio embrionário, quando podem se diferenciar em vários tipos — doadas por pacientes e voluntários saudáveis.
Assim, eles construíram um modelo que permitiu simular o desenvolvimento cerebral comparando as amostras retiradas dos dois grupos. "Nós observamos diferenças moleculares e funcionais entre células endoteliais cerebrais derivadas das células-tronco reprogramadas de pacientes portadores de esquizofrenia e doadores saudáveis", conta o neurocientista Stevens Rehen, pesquisador do Instituto D´Or e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Além disso, os cientistas identificaram um problema na barreira hematoencefálica, um portão que impede a passagem de substâncias estranhas do sangue para o cérebro. "A vascularização cerebral adequada e a formação da barreira hematoencefálica são cruciais para o funcionamento adequado do cérebro. O endotélio cerebral secreta e transporta fatores e nutrientes importantes para a atividade neuronal, neuroproteção etc. Uma falha nessas funções endoteliais pode alterar o desenvolvimento cerebral em estágios iniciais, além de interferir na recuperação cerebral após danos", destaca Rehen.
Segundo Bárbara Casas, neurocientista da Universidade do Chile e um dos autores do estudo, a descoberta tem implicações clínicas. "Como as células endoteliais estão em contato direto com o sangue, alterações moleculares e funcionais nelas podem ser detectadas em amostras sanguíneas, auxiliando potencialmente no diagnóstico precoce e na decisão de tratamento da esquizofrenia", explica. (PO)
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