CIÊNCIA

Cientistas descobrem a amputação cirúrgica mais antiga da história

Análise de esqueleto encontrado na Ilha de Bornéu revela detalhes sobre o procedimento mais antigo da história. Segundo cientistas, o jovem caçador-coletor teve o pé esquerdo retirado com um "corte nítido", foi cuidado e sobreviveu por seis a nove anos

Correio Braziliense
postado em 08/09/2022 05:58 / atualizado em 08/09/2022 05:59
Esqueleto foi encontrado em 2020: cirurgia demandou
Esqueleto foi encontrado em 2020: cirurgia demandou "conhecimento profundo da anatomia humana, do sistema muscular e vascular" - (crédito: AFP)

Descoberto em uma floresta remota da Ilha de Bornéu, no sudeste asiático, o esqueleto de um jovem traz um novo capítulo à história da medicina antiga. Trata-se da evidência mais antiga de uma amputação bem-sucedida em humanos. A análise do fóssil, detalhada na edição desta semana da revista Nature, mostra que o procedimento, realizado há 31 mil anos, foi conduzido por alguém com conhecimento suficiente para evitar que o paciente, um menino ou um jovem, sangrasse até a morte e sobrevivesse por cerca de nove anos.

"(A descoberta) reescreve nossa compreensão do conhecimento médico", avalia o paleontólogo Tim Maloney, da Universidade Griffith, na Austrália, e líder do estudo. Até então, a evidência mais antiga de um procedimento do tipo datava de 7 mil anos — envolveu a amputação, também avaliada como bem-sucedida, do braço de um homem. Os ossos com sinais de cicatrização foram encontrados em 2010, em um sítio neolítico na França. Há também um consenso entre os cientistas de que as primeiras práticas médicas estão ligadas à revolução neolítica há cerca de 10 mil anos, quando a agricultura e a sedentarização levantaram problemas de saúde anteriormente desconhecidos.

Agora, os ossos de um jovem com o pé amputado encontrados, em 2020, na floresta tropical Sangkulirang-Mangkalihat colocam em xeque essas teorias. Os restos humanos estavam em uma gruta de calcário de Liang Tebo, área conhecida por abrigar os primeiros desenhos figurativos da humanidade, feitos há mais de 40 mil anos. Ao escavar a parte inferior da caverna a uma profundidade de 1,5 metro, a equipe encontrou um esqueleto notavelmente preservado. O corpo, porém, não tinha o tornozelo e o pé esquerdos.

Analisando o material, a equipe de cientistas concluiu que os ossos que faltavam não estavam perdidos na caverna. O fato de a ponta do osso restante da perna mostrar um "corte nítido e oblíquo", que permite "olhar através do osso", explica Tim Maloney, levou o grupo a concluir que se tratava do resultado de uma cirurgia de amputação. A aparência não seria tão regular, garante o paleontólogo, se a amputação tivesse ocorrido por algo inesperado, como uma queda ou o ataque de um animal. "Isso supõe um conhecimento profundo da anatomia humana, do sistema muscular e vascular", indica o artigo.

De acordo com os autores, as pessoas que operaram o jovem tiveram que "limpar, desinfetar e cobrir regularmente a ferida" para evitar sangramento ou infecção pós-operatória, o que poderia ter matado o paciente. Charlotte Ann Roberts, arqueóloga da Universidade de Durham, no Reino Unido, acredita que, pela complexidade atual de uma amputação, quem fez esse procedimento há 31 mil anos pode ter usado plantas medicinais para evitar que o paciente sangrasse até a morte. "Possivelmente, um tipo de musgo", indicou a especialista, que não participou do estudo, em um artigo de opinião publicado também na revista Nature.

Altruísmo

Convencidos de que se tratava de um procedimento de amputação pré-histórico, os cientistas se surpreenderam ainda mais com as condições pós-cirúrgicas. A análise dos sinais de cicatrização óssea, observáveis ao microscópio, indicam que o paciente viveu mais seis a nove anos após a operação, morrendo de causas desconhecidas com uma idade estimada de 20 anos.

Para a equipe, é improvável que a amputação tenha sido realizada como punição, já que o jovem parece ter recebido um tratamento completo após a cirurgia. Além disso, o seu estado depois da retirada do pé esquerdo provavelmente obrigou os que o cercavam a cuidar dele até a morte, condição que, segundo os pesquisadores, sinaliza a existência de um comportamento altruísta nesse grupo de caçadores-coletores.

Na avaliação de Charlotte Ann Roberts, essas descobertas "fornecem uma nova visão dos cuidados e tratamentos que foram oferecidos em um passado muito distante e modificam nossa visão de que essas questões não foram levadas em consideração na pré-história". Maloney e seus colegas investigam, agora, que tipo de instrumento cirúrgico poderia ter sido usado naquela época. Uma das hipóteses é de que uma ferramenta de pedra afiada foi usada no corte intencional que amputou o pé esquerdo do jovem asiático.

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Mamífero mais antigo viveu no Brasil

 (crédito:  Rochele Zandavalli/ UFRGS/Divulgação)
crédito: Rochele Zandavalli/ UFRGS/Divulgação

O mais antigo mamífero da Terra que se tem registro viveu onde hoje é o Rio Grande do Sul, mostra um estudo divulgado, nesta semana, no Journal of Anatomy. O pequeno animal, da espécie Brasilodon quadrangularis, tinha 20cm de comprimento e pesava um pouco mais de 15g. Restos mortais de espécimes foram encontrados no início dos anos 2000 e são estudados por cientistas brasileiros e britânicos desde então.

O material foi encontrado em rochas fossilíferas do período Triássico/Noriano, datadas como tendo aproximadamente 225 milhões de anos. Depois de 20 anos, tecnologias avançadas permitiram a análise de microscopia das mandíbulas e dos dentes dos animais e ajudaram o grupo de cientistas a concluir que os fósseis eram do mamífero mais antigo do planeta. Até então, esses bichos eram descritos na literatura científica como tendo uma natureza biológica reptiliana.

"Desde que foram encontrados (...), esses fósseis eram descritos como animais ectotérmicos e ovíparos, isto é, seriam animais de sangue frio e colocariam ovos para a sua reprodução. Nossa pesquisa demonstrou (...) que eles já apresentavam difiodontia, isto é, apenas uma dentição permanente substituindo a dentição de leite", explica, em comunicado, Sergio Furtado Cabreira, paleontólogo, doutor em geologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e um dos integrante da equipe de pesquisadores.

A difiodontia está diretamente associada, nos mamíferos de hoje, a características como endotermia e lactação. A semelhança levou a equipe a concluir que os brasilodontídeos eram pequenos animais peludos endotérmicos (de sangue quente) e tinham filhotes que eram amamentados pela mãe. "Essas são as características básicas que hoje encontramos entre o maior grupo dos mamíferos atuais: os placentários. Esse era um mistério que se mantinha oculto por mais de 150 anos, desde a descoberta dos primeiros cinodontes nos anos de 1830 a 1850", enfatiza Cabreira.

Segundo o paleontólogo, os diminutos mamíferos eram parecidos com os roedores atuais. Tinham hábitos noturnos, caçavam insetos e pequenos répteis e viviam em pequenas tocas, onde os filhotes ficavam até se tornarem adultos. Eles faziam parte do grupo de terapsídeos, que viveram em todos os continentes desde o Triássico e incluíam os primeiros mamíferos do planeta.

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