Saúde

Especialistas defendem que IMC deixa de ser principal fator para peso saudável

Especialistas defendem que o índice de massa corporal deixe de ser a principal referência para um peso saudável. A relação cintura-quadril, considerada um relevante preditor para morte precoce, surge como um dos indicativos mais adequados

Paloma Oliveto
postado em 02/10/2022 05:00
 (crédito: Valdo Virgo)
(crédito: Valdo Virgo)

Já se foram mais de dois séculos desde que o matemático belga Adolphe Jacques Quetelet propôs a fórmula "peso dividido pela altura ao quadrado" para medir o grau de obesidade da população e, assim, nortear políticas públicas de saúde. Desde então, o chamado índice de massa corporal (IMC) é a referência mundial utilizada em estudos epidemiológicos. Alguns profissionais de saúde também recorrem ao cálculo para avaliar o peso dos pacientes, algo que o próprio Quetelet desaconselhava. Para muitos pesquisadores e especialistas, é hora de rever essa medida que, além de desatualizada, não leva em conta um dos principais fatores de risco para doenças metabólicas e cardiovasculares: a gordura abdominal.

Na reunião anual da Associação Europeia para o Estudo do Diabetes em Estocolmo, na Suécia, pesquisadores da universidade irlandesa College Cork apresentaram um estudo sugerindo que a relação cintura-quadril (circunferência da cintura dividida pela do quadril) é um preditor melhor de morte precoce. Por isso, sugerem que seja utilizada como medida padrão de peso saudável. "O IMC não leva em consideração onde a gordura é armazenada. Como resultado, não prevê de forma confiável o risco de doença ou mortalidade", sustenta Irfan Khan, principal pesquisador e estudante de medicina da instituição.

Para descobrir se a relação cintura-quadril (RCQ) associa-se a aumento de mortalidade, os pesquisadores utilizaram dados do Biobank, um dos maiores bancos de dados mundiais sobre saúde, que aponta, entre diversas variáveis, a presença de alguns genes conhecidos por aumentar o risco de ganho de peso e de obesidade. A informação genética foi cruzada com o IMC e a RCQ.

A equipe utilizou dados de 25.297 homens e mulheres, cujas informações de saúde foram rastreadas até a morte dos participantes. A análise mostrou que, quanto menor a relação cintura-quadril, menor também o risco de mortalidade precoce. O inverso também foi verdadeiro: uma RCQ maior estava associada ao aumento de óbitos antes dos 70 anos. Porém, isso não aconteceu quando a mesma avaliação levou em consideração o IMC. Nesse caso, tanto um índice extremamente alto quanto um excessivamente baixo mostraram relação com um risco aumentado de mortalidade.

Além disso, a RCQ foi mais fortemente associada à mortalidade por todas as causas do que o IMC: cada aumento de uma unidade nessa relação elevou o risco de óbito precoce quase duas vezes mais, comparado ao IMC. "A RCQ reflete melhor os níveis de gordura abdominal, incluindo a gordura visceral, que envolve os órgãos profundamente dentro do corpo e aumenta o risco de uma série de condições, incluindo diabetes tipo 2 e doenças cardíacas", explica Khan. "A mensagem é simples: quanto maior a relação cintura-quadril, maior o risco. Uma medida mais precisa de uma forma corporal saudável pode fazer uma diferença significativa nos problemas de saúde e nas mortes causadas por doenças metabólicas, cardiovasculares, alguns tipos de câncer e várias outras condições", defende.

Segundo o médico endocrinologista Filippo Pedrinola, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem), da Associação Brasileira de Estudos sobre Obesidade (Abeso) e da Endocrine Society, dos Estados Unidos, o IMC pode levar a interpretações equivocadas. "Como ele não leva em conta a composição corporal, uma pessoa bastante musculosa pode ter 1,70m, pesar 80kg e praticamente não ter gordura. Mas o cálculo do IMC a classificaria como obesa. Para estudos populacionais, o IMC ajuda. Mas, individualmente, é pouco preciso."

Pedrinola, que também é pesquisador e autor do livro Um convite à saúde (editora Abril), explica que a relação cintura-quadril é um melhor indicador de riscos porque ela considera a gordura visceral. Esse lipídio tem um perfil metabólico diferente do subcutâneo e está relacionado a processos inflamatórios que aumentam a resistência à insulina, a síndrome metabólica e estimula mais ganho de peso. No estudo irlandês, a associação da RCQ com mortalidade precoce foi maior entre os homens. "De fato, os homens têm mais gordura visceral que as mulheres. Essa gordura não é causada só por obesidade, mas por dietas inadequadas, consumo de álcool e carboidratos refinados", diz.

O médico Bruno Babetto, pós-graduado em endocrinologia e metabologia, ressalta que não há medidas perfeitas, porque a própria relação cintura-quadril pode gerar equívocos. "Fatores como idade, sexo, etnia e massa muscular podem influenciar a relação cintura-quadril. Por exemplo, latinos têm a tendência de terem quadris mais largos. Você pode ter uma RCQ alta porque carrega mais peso em seu abdômen. Ou você pode simplesmente ter músculos extras ao redor dos quadris por causa do treino", destaca (Leia entrevista).

Para Filippo Pedrinola, os pacientes deveriam desviar o foco de fórmulas matemáticas e apostar em mudanças no estilo de vida. "Os pilares da vida saudável são alimentação, atividade física, gerenciamento das emoções, sono adequado e espiritualidade. É mais importante pensar em hábitos do que em medidas."

 

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Como calcular

Para obter a relação cintura-quadril, é necessário dividir a circunferência da cintura (no ponto médio entre a última costela e o osso do quadril) pela circunferência do quadril, medidas por fita métrica. Segundo a Organização Mundial da Saúde, os resultados da relação cintura-quadril variam de acordo com o sexo e idade, devendo ser de no máximo 0,80 para mulheres e máximo de 0,95 para homens. Resultados iguais ou superiores a esses valores indicam alto risco para doenças cardiovasculares.

Três perguntas para Bruno Babetto, pós-graduado em endocrinologia e metabologia, médico da clínica Tivolly

 (crédito: Arquivo pessoal )
crédito: Arquivo pessoal

Bruno Babetto, pós-graduado em endocrinologia e metabologia, médico da clínica Tivolly
A relação cintura-quadril é um indicador mais adequado que o IMC?
De fato, o índice de massa corporal (IMC) não distingue entre excesso de gordura, massa muscular ou massa óssea (massa corporal magra e massa gorda). Atletas podem ter um IMC alto sem ter um alto percentual de gordura corporal. Por outro lado, uma pessoa com IMC normal pode ter baixa porcentagem de massa muscular. Há muito se sabe que a relação cintura-quadril (RCQ) está mais intimamente associada ao risco cardiovascular do que o índice de massa corporal, e, por esse motivo, está incluída nas diretrizes para avaliação e manejo do sobrepeso e da obesidade.

É possível um indivíduo ter peso considerado saudável e uma relação cintura-quadril inadequada?
A principal desvantagem da circunferência da cintura parece ser sua falta de capacidade de diferenciar a deposição de gordura subcutânea da visceral e também possíveis erros na correta medição. Além disso, a relação quadril-cintura muda pouco com a perda de peso modesta e, portanto, não reflete necessariamente melhorias na saúde como resultado de tratamentos de obesidade que levam à perda de peso. O cálculo da RCQ é um dos fatores que auxiliam na estratificação do risco cardiovascular. No entanto, além dessa medida, outros dados clínicos devem ser obtidos pelo médico. Indivíduos magros com quadril pequeno podem apresentar uma RCQ elevada; porém, nesse caso, não configura aumento do risco cardiovascular por esse critério. Nem sempre a RCQ traduz um risco cardíaco aumentado. Por isso, a avaliação deve ser individualizada e realizada por um profissional. O que se pode dizer é que pessoas com baixa RCQ, mas alto IMC são raras.
Por que a gordura abdominal é um preditor de doenças metabólicas e cardiovasculares?
A obesidade abdominal está relacionada à deposição de tecido adiposo nas vísceras. Ou seja, ao contrário da gordura logo abaixo da pele (gordura subcutânea), a gordura em torno dos órgãos dentro da cavidade abdominal aumenta o risco de entupimento das artérias, dificultando o desempenho adequado do coração. Isso ocorre porque o acúmulo de células gordurosas produz substâncias inflamatórias que se alojam nos vasos sanguíneos, aumentam a pressão sanguínea e inflamam tecidos e órgãos. O problema é que não é possível afirmar que uma pessoa dentro do peso ideal está livre dessa gordura. Mesmo aqueles que não são considerados obesos pelos padrões de IMC podem ter gordura visceral, assim como também é possível ser obeso e não ter nenhuma gordura visceral.

Foco no percentual de perda

Especialistas da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem) e da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso) defendem uma mudança na classificação da obesidade. No lugar do índice de massa corporal (IMC), os médicos argumentam que, para o acompanhamento do progresso dos pacientes, é mais vantajoso considerar o percentual de perda de peso.

Em um artigo publicado na revista Archives of Endocrinology and Metabolism, os médicos destacam que a perda acima de 5% do peso mais alto que o paciente registrou é associada a melhoras clínicas, sendo que a redução entre 10% e 15% traz ainda mais benefícios à saúde, independentemente do IMC. "Essa classificação simples — que não pretende substituir outras, mas servir como ferramenta adjuvante — poderia ajudar a disseminar o conceito de benefícios clínicos derivados da perda de peso modesta, permitindo que indivíduos com obesidade e seus profissionais de saúde se concentrem em estratégias de manutenção do peso, no lugar de maior redução de peso", alegam.

Segundo a endocrinologista Maria Edna de Melo, presidente do Departamento de Obesidade da Sbem, especialmente nos casos de obesidade grave, em que, geralmente, o paciente tem excesso de peso há muito tempo, além de predisposição genética à doença, pode ser muito frustrante ter como meta baixar o IMC. "Isso pode levar à interrupção do tratamento e à recidiva da doença", destaca a médica, que é um dos autores do artigo publicado na Archives of Endocrinology and Metabolism.

Maria Edna de Melo explica que algo semelhante acontece no manejo da diabetes 2. De acordo com a endocrinologista, a hemoglobina glicada (medida da glicemia no sangue) ideal é abaixo de 5,7. "Mas para uma pessoa que tem a doença, em torno de 7 é considerado um valor bom, não precisa ficar abaixo disso, porque há benefícios para a saúde." A médica exemplifica com uma paciente jovem, que pesava 160kg e conseguiu eliminar 60kg. "Ela ainda tem 100kg e um IMC 40 (classificado como obesidade mórbida). Mas ela perdeu 60kg, e, para a saúde, isso é muito importante."

A especialista destaca que avaliações de peso e distribuição de gordura corporal devem, sempre, levar em conta as especificidades de cada paciente. "A obesidade se apresenta de maneiras diferentes; por exemplo, tem gente com peso considerado normal, mas com toda a gordura concentrada na barriga. Por isso, a abordagem tem de ser individualizada." (PO)

 

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