Pandemia climática

Consequências do aquecimento global já são ameaça à sobrevivência

Série do Correio mostra como as mudanças geradas pelo aquecimento global se tornaram uma grande ameaça à sobrevivência humana. Especialistas alertam que os efeitos são multissistêmicos: de doenças cardiovasculares e respiratórias a transtornos mentais

Paloma Oliveto
postado em 25/12/2022 04:50
 (crédito: ANGELOS TZORTZINIS)
(crédito: ANGELOS TZORTZINIS)

Ondas de calor extremas, incêndios de grande porte, enchentes, secas e fenômenos naturais exacerbados: os sintomas mostram que a saúde do planeta não vai nada bem. As mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global — em ritmo acelerado pela atividade humana — têm um impacto devastador sobre os ecossistemas e, cada vez mais, evidencia-se que estão associadas a diversas enfermidades.

De doenças transmitidas por vetores, como dengue, a acidente vascular cerebral, estudos recentes mostram que o impacto das mudanças climáticas na saúde humana é multissistêmico. Até mesmo transtornos mentais, como ansiedade, foram associados, indiretamente, ao aumento da temperatura do globo. O assunto preocupa a Organização das Nações Unidas (ONU) a ponto de o tema ter entrado na agenda oficial das Conferências sobre Mudanças Climáticas (COPs).

"Globalmente, entre 2030 e 2050, espera-se que as mudanças climáticas causem 250 mil mortes adicionais por ano por desnutrição, malária, diarreia e estresse térmico. Os custos para serviços de saúde e infraestrutura são estimados em US$ 2 bilhões a
US$ 4 bilhões por ano até 2030", destaca a infectologista Ying-Ru Lo, especialista em saúde pública da Organização Mundial da Saúde (OMS). Isso sem contar outros óbitos direta ou indiretamente associados ao aquecimento global, como os causados pela poluição atmosférica.

De hoje a terça-feira (27/12), o Correio mostra como o aumento na temperatura já afeta a saúde humana, o que dizem as pesquisas mais recentes sobre o tema e as chances, segundo especialistas, de se evitar uma "pandemia climática".

Complexidade

O papel das mudanças climáticas em doenças e na mortalidade é um cálculo difícil de fazer, porque as consequências de um planeta cada vez mais quente impactam a saúde de diversas formas (veja quadro)."Calor e eventos climáticos extremos não apenas levam ao aumento da mortalidade e morbidade humana, mas também à escassez de alimentos e água, à poluição do ar e a doenças em longo prazo", explica o virologista Shahid Jameel, pesquisador da Universidade de Oxford, no Reino Unido. "O aumento da exposição à fumaça de incêndios florestais, a partículas na atmosfera e a alérgenos transportados pelo ar está associado a problemas cardiovasculares e respiratórios. Chuvas e inundações prematuras aumentam a ocorrência de doenças transmitidas por alimentos e pela água e prejudicam os serviços de saúde", enumera.

Com o agravamento da crise climática e a elaboração, em 2015, do Acordo de Paris, um marco na tentativa de frear o aumento das emissões de gases de efeito estufa, a literatura científica sobre a associação entre mudanças climáticas e saúde sofreu um salto. Uma busca no Pubmed, um dos maiores buscadores de artigos científicos na área médica, mostra que, em 2010, foram publicados 360 estudos sobre o tema. Cinco anos depois, o número subiu para 720. Antes mesmo do fim de dezembro, a plataforma já registrava mais de 3,1 mil, produzidos apenas em 2022.

Um artigo que fez a revisão de pesquisas recentes e será publicado na edição de janeiro da revista Allergy identifica e detalha 14 categorias de impactos das mudanças climáticas na saúde individual e pública em curto e longo prazo. Um incêndio florestal, por exemplo, tem potencial de provocar envenenamento por monóxido de carbono ou por outro gás tóxico. Isso pode exacerbar, com o tempo, condições cardiovasculares crônicas, como falência cardíaca e arritmia. Hospitais próximos também podem ser prejudicados com a contaminação dos sistemas ventilatórios por fumaça e poeira ou perda de energia elétrica.

"A ciência é clara e inequívoca de que a atividade humana é responsável pelas mudanças climáticas atuais e futuras", destacam os autores, de instituições como a Escola de Higiene e Saúde Pública de Londres, na Inglaterra, e da Universidade de Melbourne, na Austrália. "A saúde e o bem-estar humanos são consequências da saúde global do planeta. Mesmo que cumpramos as metas do Acordo de Paris, ônus substanciais e riscos à saúde devido às mudanças climáticas podem ser inevitáveis", destacam. Por isso, os cientistas afirmam que "políticas muito mais agressivas combinadas com a ação de mudança climática de cada cidadão individual são necessárias para mitigar e se preparar para futuros eventos climáticos".

 

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Pobreza alimentar e energética

 (crédito: Grantham Research Institute/Divulgação )
crédito: Grantham Research Institute/Divulgação

Um dos diagnósticos mais robustos sobre o impacto das mudanças climáticas na saúde foi produzido por uma colaboração de 120 especialistas, incluindo profissionais de agências da ONU, liderados pela universidade inglesa College London. Anualmente, o grupo publica um relatório na revista médica The Lancet, pouco antes da realização das conferências climáticas. O projeto, chamado The Lancet Countdown, é embasado por produções científicas atualizadas e tem como principal objetivo nortear políticas públicas.

A sétima edição foi divulgada às vésperas da COP27, que aconteceu em novembro, no Egito. Elaborado por 99 especialistas, o artigo apresenta 43 indicadores, novos e atualizados, com foco no impacto dos combustíveis fósseis — principais desencadeadores das mudanças climáticas — em aspectos como insegurança alimentar, proliferação de doenças infecciosas e temperaturas extremas.

"As mudanças climáticas já estão tendo um impacto negativo na segurança alimentar, com implicações preocupantes na desnutrição e na subnutrição. Novos aumentos na temperatura, frequência e intensidade de eventos climáticos extremos e nas concentrações de dióxido de carbono colocarão ainda mais pressão sobre a disponibilidade e o acesso a alimentos nutritivos, especialmente para os mais vulneráveis", disse Elizabeth Robinson, líder do Grupo de Trabalho de Contagem Regressiva sobre Impactos, Exposições e Vulnerabilidade. "Isso é particularmente preocupante, uma vez que as cadeias globais de abastecimento de alimentos se revelaram, mais uma vez, altamente vulneráveis a choques, manifestando-se no rápido aumento dos preços dos alimentos e aumentos proporcionais na insegurança alimentar."

Vulneráveis

O relatório também dimensiona os riscos à saúde provocados pelo calor extremo (leia mais na edição de amanhã), que afeta, especialmente, populações vulneráveis. As mortes relacionadas às altas temperaturas aumentaram 68% entre 2017 e 2021, em comparação com 2000-2004; enquanto a exposição humana a dias de risco de incêndio muito alto ou extremamente alto aumentou em 61% globalmente de 2001-2004 a 2018-2021, diz o artigo.

"Nosso relatório revela que estamos em um momento crítico. Vemos como a mudança climática está causando graves impactos à saúde em todo o mundo, enquanto a persistente dependência global de combustíveis fósseis agrava esses danos em meio a várias crises globais, mantendo as famílias vulneráveis aos voláteis mercados de combustíveis fósseis, expostas à pobreza energética e a níveis perigosos de poluição do ar," comentou Marina Romanello, diretora executiva da Lancet Countdown na Universidade College London. (PO)

Leia amanhã: o impacto direto do excesso de calor na saúde.

Riscos, exposições e impactos

» Ondas de calor: juntos, todos os idosos com mais de 65 anos e crianças com menos de 1 ano enfrentaram 3,7 bilhões de dias de ondas de calor com risco de morte em 2021 do que, anualmente, de 1986 a 2005, colocando-os em risco agudo de estresse por calor, insolação e outros problemas físicos e mentais adversos.

» Incêndios: o tempo mais seco e quente torna as condições cada vez mais propícias ao início e à propagação de incêndios florestais, colocando em risco a saúde e a segurança das populações. A exposição humana a dias de risco de incêndio muito alto ou extremamente alto aumentou em 61% de 2001-2004 a 2018–2021.

» Seca: as secas colocam em risco a segurança alimentar e hídrica, ameaçam o saneamento, afetam os meios de subsistência e aumentam o risco de incêndios florestais e de transmissão de doenças infecciosas. Em média, 29% a mais de área terrestre global foi afetada por seca extrema anualmente por pelo menos um mês, em um ano entre 2012–2021, do que em 1951–1960.

» Doenças infecciosas: a mudança climática está afetando a distribuição e a transmissão de muitas doenças infecciosas, incluindo as transmitidas por vetores, alimentos e água. A adequação climática para a transmissão da dengue aumentou 11,5% para o Aedes aegypti e 12% para o Aedes albopictus, comparando 1951–1960 a 2012–2021.

» Desnutrição: a frequência crescente de ondas de calor resultou em mais 98 milhões de pessoas relatando insegurança alimentar moderada a média nos 103 países analisados em 2020, em comparação com a média de 1981-2010.

Fonte:The 2022 Global Report of the Lancet Countdown

 

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