Era pouco mais de 5h e ainda estava escuro na Ucrânia quando o céu clareou subitamente em Kiev. Explosões na capital, em Kharkiv, Odessa e Donbass em 24 de fevereiro de 2022, uma quinta-feira, marcaram o início de uma guerra que, até agora, matou cerca de 300 mil pessoas, incluindo civis. Destruído pelas forças russas, o país da Europa Oriental lida com uma crise na saúde pública, com falta de suprimentos médicos, instalações bombardeadas e milhares de pacientes de doenças crônicas desassistidos. Os impactos estão sendo calculados por especialistas, mas, com base neste e em outros conflitos armados, já se sabe que são diversos: de alterações na estrutura cerebral a aumento global da resistência antimicrobiana.
"Desde o começo do conflito, a Organização Mundial da Saúde verificou 802 ataques ao sistema de saúde, que resultaram em 101 mortes de profissionais e pacientes", disse o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, comentando os 12 meses de invasão russa. "A guerra está exacerbando as necessidades médicas, incluindo suporte de saúde mental e psicossocial, reabilitação, tratamento para doenças crônicas e outras, como câncer, HIV e tuberculose, e vacinas para sarampo, pólio e pneumonia. Essas lacunas são um risco para a saúde hoje e no futuro."
Segundo Ubydul Haque, professor de saúde global e epidemiologia da Universidade Rutgers, em New Brunswick, nos Estados Unidos, "o custo humano da guerra Rússia-Ucrânia vai muito além das muitas mortes e ferimentos trágicos resultantes do próprio conflito". Haque é autor de um artigo, publicado recentemente na revista BMJ Global Health, no qual rastreou mortes e ferimentos provocados pela guerra no território ucraniano, além das consequências da invasão russa na saúde pública (Leia entrevista). Segundo o especialista, o efeito foi profundo e persistirá por gerações.
Um dos impactos da guerra na saúde humana é imperceptível, mas pode ser devastador para o processamento de emoções no cérebro. Um estudo do Brigham and Women's Hospital, em Massachusetts, detectou alterações físicas na estrutura do cérebro em áreas que controlam emoções e impulsos básicos. Os pesquisadores, do Departamento de Psiquiatria, analisaram imagens geradas por ressonância magnética de 168 veteranos norte-americanos que estiveram em conflitos armados e participaram de um programa nacional de reabilitação do Centro Translacional de Pesquisa para Distúrbios do Estresse.
A equipe descobriu que o estresse gerado pela guerra tinha associação com alterações na microestrutura da substância cinzenta límbica, independentemente de diagnóstico de transtorno mental ou de alguma lesão traumática leve. As alterações detectadas associaram-se ao funcionamento cognitivo, incluindo prejuízo nas respostas a estímulos, na memória verbal de curto prazo e na velocidade de processamento de informações.
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Traumas diários
A saúde mental é um dos campos mais bem explorados no estudo sobre guerras, e a invasão da Rússia a territórios ucranianos, em 2014, deu mostras do que pode ocorrer agora. Uma pesquisa da Universidade de Turku, na Finlândia, detectou níveis elevados de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e ansiedade em adolescentes de Donetsk, então tomada por Moscou, comparados aos jovens que viviam em Kirovograd — na época, uma das regiões mais pacíficas da Ucrânia.
O levantamento, conduzido pelo Centro de Pesquisa em Psiquiatria Infantil, é o maior estudo epidemiológico sobre o impacto da guerra Rússia-Ucrânia de 2014 na saúde mental de adolescentes. Os dados incluíram 2.766 jovens de Donetsk e de Kirovograd e foram coletados entre 2016 e 2017, mais de dois anos após a primeira invasão russa ao país da Europa Oriental. "Esse estudo mostrou que os adolescentes na região de guerra sofreram traumas e estresse diário. Dos que viviam em regiões bélicas, 60% presenciaram ataques armados, 14% foram vítimas de violência e 30% foram forçados a deixar suas casas", diz a pesquisadora de pós-doutorado e principal autora, Sanju Silwal, da Universidade de Turku.
Os adolescentes de Donetsk tinham quatro vezes mais risco de sofrer de transtorno pós-traumático do que na região de Kirovograd e três vezes mais chances de ter ansiedade severa. A probabilidade de serem diagnosticados com depressão moderada ou grave também era três vezes maior. Mesmo jovens que viviam em locais não afetados diretamente pela guerra desenvolveram problemas de saúde mental, destaca Silwal.
Andre Sourander, coautor da pesquisa, lembra que a situação de 2014 nem se compara à atual. "Em 2016, a maioria dos adolescentes da região de Donetsk continuou vivendo com as famílias intactas, não perdeu familiares nem teve que deixar suas casas. Isso é importante, pois manter o apoio social da família e dos amigos protege contra o desenvolvimento do TEPT. No entanto, a situação atual é pior, pois adolescentes de toda a Ucrânia estão passando por uma invasão em grande escala pela Rússia, e muitas famílias são forçadas a fugir de suas casas. Podemos esperar que um grande número deles tenha um nível altíssimo de sofrimento psicológico e que muitos possam desenvolver transtornos mentais", afirma.
Sourander diz que, em fases cruciais do desenvolvimento físico, emocional e cognitivo, a exposição a violência e atrocidades, além da perda de redes sociais, é temerosa. "O impacto psicológico que a guerra na Ucrânia terá sobre os adolescentes não pode ser subestimado, e os países que aceitam refugiados também precisam estar cientes da necessidade de fornecer a eles serviços de saúde mental oportunos e eficazes."
As consequências já estão sendo notadas, segundo um levantamento da organização não governamental Visão Mundial com 457 ucranianos de 9 a 17 anos. Mais da metade deles (51%) relatou que os colegas estavam fumando ou usando alguma droga como mecanismo de enfrentamento. Entre meninos de 14 a 17, o percentual era de 77%. "As crianças estão lutando para lidar com traumas por cima de traumas. Com base nas experiências de outras crianças e famílias afetadas pelo conflito, podemos esperar que mais de 1,5 milhão de menores de 18 anos na Ucrânia possam desenvolver depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno bipolar ou esquizofrenia como resultado de suas experiências durante a guerra", comentou, em nota, Chris Palusky, diretor da ONG para Resposta à Crise na Ucrânia.
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Aumento da resistência a antibióticos
Uma das prováveis consequências da guerra na Ucrânia para a saúde pública é a resistência a antibióticos. Um estudo da Universidade Ruhr Bochum publicado na revista Eurosurveillance mostrou que, desde o início do conflito, micro-organismos hospitalares que evadem muitos antibióticos foram detectados, com frequência significativa, em instituições da Alemanha, país que tem recebido refugiados ucranianos.
Cepas da bactéria Klebsiella pneumoniae, detectadas em grande número em amostras de hospitais alemães desde a primavera de 2022, produzem uma combinação de duas enzimas que aumentam a resistência antimicrobiana. "Percebemos que muitas dessas amostras tinham uma conexão com a Ucrânia: eram de alemães que fugiram de lá, por exemplo, ou de refugiados hospitalizados na Alemanha", explicou, em um comunicado, Niels Pfennigwerth, um dos autores. Investigações posteriores provaram que realmente havia uma conexão, destacou.
A descoberta alemã vai ao encontro de um estudo publicado na revista BMJ Global Health que relatou um "aumento catastrófico" da resistência a antibióticos no Iraque, após décadas de guerras e conflitos. As implicações são sérias e podem afetar não só a região, mas todo o mundo, advertiram os autores.
Embora a principal causa da resistência antimicrobiana seja o uso excessivo e, muitas vezes, indevido de antibióticos, fatores como contaminação por metais pesados também contribuem para um problema que, segundo a OMS, pode causar 10 milhões de mortes por ano até 2050. Explosivos, por exemplo, contêm grandes quantidades de chumbo e mercúrio, que persistem no meio ambiente, enquanto cromo, cobre, níquel e zinco são usados para revestir balas, mísseis, canos de armas e veículos militares. Segundo os autores do estudo, muitas espécies bacterianas desenvolveram resistência justamente para combater a toxicidade desses elementos.
"Em conjunto, uma infraestrutura de saúde destruída, terapias microbianas inadequadas, recursos limitados, alta contaminação por metais pesados em humanos e no meio ambiente e falta de água limpa, saneamento e higiene provavelmente desempenham papéis decisivos no aumento catastrófico de resistência microbiana no Iraque e, por extensão, regional e globalmente", afirma Antoine Abou Fayad, pesquisador da Universidade de Beirute e principal autor. "Entender essas ligações entre resistência a antibióticos e conflito armado, especialmente ao longo do tempo, é essencial para uma resposta global, principalmente porque há pouca indicação de que esses conflitos, em todo o mundo, diminuirão nos próximos anos."
Ubydul Haque, professor de saúde global e epidemiologia da Universidade Rutgers, New Brunswick
Costumamos associar guerras e conflitos armados com morte e destruição imediatas. Para a saúde, o que representam a curto e longo prazos?
Para a saúde, os impactos de curto prazo são mortalidade e lesões. Há grandes impactos de longo prazo na saúde mental, com perdas de entes queridos e aumento do estresse. As perdas financeiras também impactam indiretamente a saúde.
No caso de guerras em curso, como a da Ucrânia, já é possível avaliar o impacto das interrupções nos tratamentos de doenças crônicas, como HIV, câncer e diabetes?
Sim, a guerra afetou seriamente os tratamentos. Por exemplo, houve escassez de suprimentos médicos, kits de diagnóstico, remédios e insulina. Essa escassez certamente teve impactos negativos nos tratamentos de HIV, câncer e diabetes.
Um relatório da ONU divulgado na última quinta-feira relata o aumento ou a estagnação da mortalidade materna globalmente. Os casos podem disparar na Ucrânia?
Sim, espero que os casos disparem na Ucrânia. Antes da invasão russa de 2022, havia 720 hospitais na Ucrânia. Atualmente, apenas 450 estão funcionando no país. Essa redução certamente impactará indiretamente a saúde materno-infantil.