Piloto paralítico voltar a andar após implante cerebral

Holandês que ficou paralítico há 12 anos tem a comunicação entre o cérebro e a medula espinhal restabelecida e recupera o comando das pernas. Técnica poderá ser usada no controle de intestino e bexiga

Paloma Oliveto
postado em 25/05/2023 06:00
 O holandês Gert-Jan, 40 anos, comemora o resultado da técnica:
O holandês Gert-Jan, 40 anos, comemora o resultado da técnica: "Tudo aconteceu em apenas dois dias" - (crédito: AFP)

Há 12 anos, o piloto de testes holandês Gert-Jan Oskam, então com 28, sofreu um acidente de bicicleta e ficou paralítico. Com um dano considerado irreversível na altura do pescoço, acabou confinado a uma cadeira de rodas, sem perspectiva de reabilitação. Andar e subir escadas era um sonho praticamente impossível para o jovem. Mas, agora, ele já é capaz de fazer isso. Oskam recebeu um implante cerebral que restaurou a comunicação com a medula espinhal em um experimento de cientistas da Suíça. O dispositivo lê a intenção do homem de se movimentar e, instantaneamente, o cérebro dispara o comando para os membros inferiores. A técnica, ainda em estudo, foi descrita nesta terça-feira (24/5) na revista Nature.

"Para andar, o cérebro tem de mandar um comando para a região da medula espinhal responsável pelo controle dos movimentos. Quando há uma lesão, a comunicação é interrompida", explicou, em uma entrevista coletiva on-line, o líder do estudo, Grégoire Courtine, do Instituto Federal de Tecnologia da Suíça, em Lausanne. "Nossa ideia era restabelecer a comunicação com uma ponte digital entre o cérebro e uma região da medula ainda intacta, controlando o movimento da perna." A ponte a que Courtine se refere é uma interface cérebro-máquina que vem sendo desenvolvida pela equipe há alguns anos. Em 2018, foi publicada a primeira demonstração da técnica.

 Gert-Jan perdeu os movimentos das pernas após sofrer um acidente de bicicleta
Gert-Jan perdeu os movimentos das pernas após sofrer um acidente de bicicleta (foto: AFP)

 

 

A neurocirurgiã Jocelyne Bloch, da Universidade de Lausanne, contou que foram necessários dois procedimentos para a instalação dos dispositivos. No primeiro, os médicos fizeram duas craniotomias (buracos no crânio), uma de cada lado da cabeça, para instalar os eletrodos. Depois, o mesmo foi feito na região da medula espinhal responsável pelo movimento da perna. "Então, há, agora, uma comunicação entre o cérebro e essa região. A ponte digital reativou as pernas do paciente."

"Graças a algoritmos baseados em métodos adaptativos de inteligência artificial, as intenções de movimento são decodificadas em tempo real pelo cérebro", relatou Guilherme Charvet, cientista que ajudou a desenvolver a interface. "Essas intenções são, então, convertidas em sequências de estimulação elétrica da medula espinhal, que, por sua vez, ativam os músculos das pernas para alcançar o movimento desejado. Essa ponte digital opera sem fio, permitindo o paciente se movimentar de forma independente."

Após as cirurgias, o homem precisou passar por treinamentos, para aprender a trabalhar com os sinais cerebrais. "Mas foi muito rápido, em poucas sessões, estava tudo conectado e o paciente começou a treinar", contou Jocelyne Bloch. Oskam participa dos experimentos há algum tempo e, há três anos, recebeu uma primeira versão do dispositivo, inferior à atual.

O paciente contou que ficou surpreso com a rapidez da resposta ao novo equipamento. "O mais surpreendente é que tudo aconteceu em apenas dois dias. Dentro de cinco ou 10 minutos, eu consegui controlar meu quadril. O implante cerebral captou o que eu estava tentando fazer", relatou. Poder movimentar novamente os membros inferiores foi uma mudança significativa na vida, disse Oksam. "As pessoas não se dão conta disso, mas poder tomar cerveja em pé no bar, com os amigos, é algo incrível."

 O cientista Guillaume Charvet explica como funciona a interface cérebro-medula, durante conferência em Lausanne
O cientista Guillaume Charvet explica como funciona a interface cérebro-medula, durante conferência em Lausanne (foto: AFP)

Mais autonomia

O tratamento é experimental, e alguns nervos danificados na medula de Oskam ainda não foram recuperados. Porém, ele consegue andar e subir alguns lances de escada e, às vezes, isso é possível mesmo quando o dispositivo está desligado, sugerindo que a tecnologia poderá ajudar na reabilitação de pacientes que perderam os movimentos por causas diversas.

Segundo os pesquisadores, a ideia, agora, é miniaturizar os equipamentos para aumentar a autonomia dos pacientes. Atualmente, os eletrodos são alimentados por uma bateria, que Oskam leva em uma maleta instalada em um andador. A comunicação do cérebro e da medula, porém, é totalmente sem fio.

"É certamente um salto enorme para melhorar a função de pessoas com lesões na medula espinhal", diz a neurocientista Anna Leonard, da Universidade de Adelaide, na Austrália, que não participou do estudo. Para ela, além do movimento de membros inferiores e superiores, a tecnologia poderá ser adaptada para outras funções afetadas por condições diversas, como o controle do intestino e da bexiga. "Certamente, ainda há espaço para outras áreas de pesquisa que podem ajudar a melhorar e expandir os resultados", acredita.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

  •  O cientista Guillaume Charvet explica como funciona a interface cérebro-medula, durante conferência em Lausanne
    O cientista Guillaume Charvet explica como funciona a interface cérebro-medula, durante conferência em Lausanne Foto: AFP
  • Equipe de médicos e pesquisadores que desenvolveram o tratamento posam com o paciente
    Equipe de médicos e pesquisadores que desenvolveram o tratamento posam com o paciente Foto: AFP
  •  Gert-Jan perdeu os movimentos das pernas após sofrer um acidente de bicicleta
    Gert-Jan perdeu os movimentos das pernas após sofrer um acidente de bicicleta Foto: AFP

Composto recupera tecido cardíaco

James Phillips e colegas testam a substância 1938: efeitos promissores -  (crédito: UCL/Divulgação)
crédito: UCL/Divulgação

Uma pesquisa liderada pela Universidade College London, na Inglaterra, identificou um composto que pode estimular a regeneração nervosa após uma lesão, além de proteger o tecido cardíaco do tipo de dano observado em um infarto. O estudo, publicado na Nature, descreve a substância, denominada 1938, que está envolvida no crescimento celular.

Os resultados iniciais mostram que o composto aumentou o crescimento de neurônios em células nervosas e, em animais, reduziu o dano no coração após um grande trauma. Também devolveu a função motora perdida em um modelo de lesão nervosa. Embora mais pesquisas sejam necessárias para traduzir essas descobertas em aplicações clínicas, o 1938 é uma das poucas substâncias em desenvolvimento capazes de promover a regeneração nervosa, para a qual, atualmente, não há medicamentos aprovados.

Os cientistas descobriram que a administração do 1938 durante os primeiros 15 minutos de restauração do fluxo sanguíneo após um ataque cardíaco forneceu proteção substancial ao tecido em um modelo pré-clínico. Quando o composto foi adicionado às células nervosas cultivadas em laboratório, o crescimento dos neurônios aumentou significativamente.

Um modelo de rato com lesão do nervo ciático também foi testado, com aplicação da substância no nervo lesionado, resultando em maior recuperação no músculo da perna traseira, indicativo de regeneração do nervo. "Atualmente, não existem medicamentos aprovados para regenerar os nervos, que podem ser danificados como resultado de lesões ou doenças. Portanto, há uma enorme necessidade não atendida", destaca James Phillips, autor sênior do estudo. "Nossos resultados mostram que há potencial para drogas que acelerem a regeneração nervosa."

Agora, os cientistas trabalham no desenvolvimento de novas terapias para terminações nervosas periféricas e também investigam se o 1938 pode ser usado no tratamento de danos no sistema nervoso central devido, por exemplo, a lesões na medula espinhal ou doenças neurodegenerativas.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação