Por mais de um mês, os rins de um porco funcionaram normalmente em um ser humano, sem indício de rejeição. Transplantados para o corpo de um homem de 57 anos com morte cerebral e mantido no suporte ventilatório, os órgãos foram modificados geneticamente. Os cientistas, do Centro de Saúde Langone, da Universidade de Nova York (EUA), editaram uma proteína do animal para evitar que o organismo do receptor produzisse anticorpos e, assim, atacasse os novos tecidos.
Esse é o período mais longo de funcionamento de rins de um animal em um ser humano. Em 2021, a mesma equipe realizou os dois primeiros xenotransplantes (entre diferentes espécies) do tipo e, no ano passado, repetiu a técnica, usando corações de porcos em dois cadáveres mantidos por aparelhos. Na experiência de dois anos atrás, o transplante renal foi observado por 54 horas, antes que as máquinas fossem desligadas. Agora, os cientistas foram autorizados a fazer um novo estudo, com dois meses de duração.
"O nosso trabalho demonstra que os rins de um porco que recebeu apenas uma modificação genética, sem uso de equipamentos ou medicamentos experimentais, podem substituir a função dos rins humanos ao menos 32 dias sem ser rejeitado", disse, em uma coletiva de imprensa on-line, Robert Montgomery, médico responsável por todos os experimentos do tipo no Langone. Ele contou que assim que os órgãos do animal foram transplantados, começaram a produzir urina. Testes frequentes indicaram que os rins funcionaram normalmente ao longo de toda a observação.
Para evitar a rejeição, além da alteração do gene que codifica uma molécula chamada alfa-gal, os cientistas adicionaram o timo do porco nos tecidos do órgão transplantado. Essa glândula endócrina é responsável por "educar" o sistema imunológico, explicou Montgomery, e foi utilizada no procedimento com objetivo de retardar a resposta imunológica do organismo do receptor.
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"Com esse estudo, esclarecemos duas questões importantes que, anteriormente, ficaram sem resposta. A primeira é se o rim de um porco seria rejeitado pelo sistema imunológico humano, o que começa a acontecer por volta de 10 a 14 dias (do procedimento)", afirmou o cirurgião. "A outra pergunta era se o rim de um porco pode assumir toda a complexidade das funções fisiológicas do rim humano. Até aqui, as biópsias renais e os testes não mostram, depois de um mês, evidências de rejeição. Além disso, a função renal é normal, com depuração das toxinas. O rim do porco parece substituir todas as tarefas importantes que o rim humano gerencia", detalhou Montgomery.
Edição estável
O médico também destacou que o rim, provavelmente, requer menos manipulação genética para ser aceito pelo sistema imunológico humano que outros órgãos, como o coração. Os animais usados pela equipe de Langone não são clonados, mas vêm de uma criação de porcos. "Por não serem clonados, as edições dos genes são estáveis e consistentes. Esses animais podem ser dimensionados com muito mais facilidade para fornecer uma fonte ilimitada de rins para os pacientes que precisam deles." No Brasil, segundo o Conselho Nacional de Saúde, 68,2 mil pessoas aguardam na fila por um transplante renal.
Com a autorização da agência reguladora Food and Drug Administration (FDA), do Conselho de Ética do hospital e da família do receptor, a equipe do Langone continua monitorando o resultado do transplante. "Já estamos perto dos dois meses. Nesse período, houve altos e baixos, mas, de forma geral, acredito que, com os dados que tivemos até agora, estamos cada vez mais próximos dos ensaios clínicos", contou o pesquisador. Porém, ele ressalta que, para que um paciente vivo receba o órgão, é preciso investigar melhor como minimizar os riscos de infecções por vírus que possam estar latentes no animal. "Temos algum trabalho a fazer e temos de garantir que estamos fazendo isso da maneira mais segura."
No ano passado, por exemplo, um transplante de coração de porco em uma pessoa viva mostrou-se inviável devido a um vírus que contaminou o órgão. O paciente morreu pouco depois do procedimento. Montgomery esclareceu que, por ora, não há planos para testar a técnica além dos rins e do coração. Segundo ele, em primatas não humanos, o uso de órgãos, como pulmões e fígado, de outros animais não foi bem-sucedido.
Roger Lord, professor da Escola de Ciências do Comportamento e Saúde da Universidade Católica da Austrália, destaca que o transplante realizado pela equipe norte-americana, descrito na edição desta quarta-feira (16/08) da revista Jama, é um estudo de caso, o que exige cautela ao se pensar em ampliar clinicamente o procedimento. Porém, Lord, que não participou da pesquisa, acredita que a técnica é promissora. "Esse estudo de caso fornece evidências preliminares importantes de que esses rins geneticamente modificados podem funcionar normalmente após o xenotransplante e oferece esperança para aqueles em listas de espera para transplante renal."
Ele ficaria orgulhoso"
"Foi uma decisão muito difícil. Eu não tinha certeza do que meu irmão iria aceitar, mas, sabendo o tipo de pessoa que ele era, eu imaginei que sim. Eu queria tentar doar seus órgãos, mas descobrimos que isso não era possível (Maurice Miller morreu de glioblastoma, um tumor agressivo no cérebro). Então, o hospital sugeriu a doação para a pesquisa. Me falaram que tinha a ver com rins, e isso me atingiu, porque meu irmão mais novo faleceu 15 meses depois de nascer de doença renal. Isso tornou o processo um pouco mais fácil para mim. Os corpos são realmente necessários para avançar na medicina, e a única maneira de fazer isso é no momento mais crítico e mais triste da vida de alguém. Embora meu irmão não possa estar aqui, posso dizer, com confiança, que ele ficaria orgulhoso do fato de deixar um legado que ajudará muitas pessoas a viver. Ele era uma boa pessoa, que amava a vida e sempre estendia a mão amiga. É justo que esse tenha sido seu ato final."
Mary Miller Duffy, irmã de Maurice Miller, o receptor dos rins utilizados na pesquisa
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