Beber moderadamente nas confraternizações de fim de ano pode ajudar a reduzir o risco de acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico, diz um estudo publicado na revista Neurology. Pesquisadores do Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos, afirmam que o consumo excessivo de álcool afeta direta e profundamente os vasos sanguíneos do cérebro, impactando na gravidade dos sangramentos dentro do órgão — um dos tipos mais letais de derrame. A conclusão baseia-se na análise de 1,6 mil pacientes acompanhados por 16 anos.
Segundo os autores, o hábito de ingerir três ou mais doses de bebidas alcoólicas por dia está associado a hematomas maiores, início precoce dos sintomas e marcas de doença crônica nos pequenos vasos cerebrais. Eles explicam que, embora a bebida seja um conhecido fator de risco cardiovascular, parte das pesquisas anteriores se concentrou na ocorrência do derrame, sem avaliar em profundidade a gravidade do sangramento nem a presença de alterações estruturais no cérebro.
"Buscamos investigar como o uso pesado de álcool está associado às características clínicas e radiológicas da hemorragia intracerebral aguda e ao acúmulo de doença dos pequenos vasos", esclarece o neurologista M. Edip Gurol, autor senior do estudo. Ele ressalta que o interesse pela pesquisa surgiu devido à relação da bebida com diversos mecanismos biológicos envolvidos tanto na ruptura dos vasos quanto na evolução das lesões: "Esse efeito é mediado por hipertensão sustentada, disfunção endotelial, quebra da barreira hematoencefálica e alterações na coagulação".
Critério
A equipe analisou pacientes que chegavam ao hospital com hemorragia espontânea — ou seja, não causada por trauma. Do total, 7% preenchiam o critério de consumo pesado, definido como três ou mais doses diárias. Os pesquisadores compararam idade de início, volume do hematoma, localização da lesão e presença de sangue nos ventrículos. Também examinaram ressonâncias magnéticas para medir o grau de doença dos pequenos vasos, incluindo áreas de degeneração na substância branca, micro-hemorragias e sinais de siderose cortical (depósito de ferro no córtex, como resultado de sangramento crônico).
Uma das principais descobertas foi a de que quem bebia pesado sofria de hemorragia 10 anos antes dos demais. O volume do hematoma também era maior — um aumento de 70%, segundo os autores. Os sangramentos também ocorriam mais frequentemente em regiões profundas, típicas de doença hipertensiva dos vasos.
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Segundo o cardiologista Philipe Marques da Cunha, professor de neurologia da Afya Educação Médica Belo Horizonte, quanto mais robusto o sangramento, maior a mortalidade. "Esses volumes de sangramentos maiores significam hematomas e danos cerebrais mais extensos e difíceis de controlar", diz. Na prática, esclarece Cunha, isso se traduz em prognóstico pior e risco elevado de sequelas graves, como incapacidade motora e cognitiva. "Pacientes com consumo elevado de álcool tendem a ter internações hospitalares mais longas e uma maior chance de ficar dependentes de terceiros. Então, quanto maior o sangramento, maior o risco de complicação desse paciente."
Deterioração
No estudo norte-americano, a deterioração funcional foi mais significativa entre os pacientes com consumo excessivo de álcool: 83% deles perderam a independência após o AVC hemorrágico, contra 67% dos demais. "Isso sugere que, mesmo quando sobrevivem à fase aguda, esses pacientes enfrentam um curso clínico mais complicado e prolongado", destaca Gurol.
A pesquisa detectou ainda alterações em exames laboratoriais. Os pacientes com histórico de consumo excessivo de álcool tinham contagens de plaquetas menores e pressão arterial mais elevada no momento da admissão hospitalar. Segundo os autores, os dados sugerem que os efeitos da bebida na coagulação — já demonstrados em estudos experimentais — podem contribuir para sangramentos mais extensos.
Além disso, pacientes com histórico de consumo pesado foram mais frequentemente classificados como portadores de doença hipertensiva dos pequenos vasos, que combina características de dano profundo e superficial. Isso se traduziu nas imagens feitas por ressonância magnética: entre os bebedores, alterações na substância branca associadas à patologia eram três vezes mais comuns.
Evidências
Embora os pacientes com risco aumentado de AVC hemorrágico sejam aqueles com consumo maior de álcool, o cardiologista Antônio Tito Paladino Filho, especialista pela Sociedade Brasileira de Cardiologia e pós-graduado em pesquisa clínica pela USP/Harvard University, esclarece que não há nível seguro da bebida. "A ideia de que 'beber moderadamente faz bem para o coração' praticamente não se sustenta mais diante das evidências mais recentes", diz. "Quando olhamos especificamente para vasos cerebrais, a noção de benefício desaparece completamente. Para o cérebro, o álcool é dose-dependente e não há nível seguro. Mesmo pequenas quantidades aumentam risco vascular cerebral e AVC hemorrágico."
Marques da Cunha também ressalta que a quantidade de álcool pesa mais do que o tipo de bebida ingerida nos impactos cerebrais negativos. "A bebida não é o problema. O problema realmente é a quantidade ingerida, e a cronicidade e o tempo de uso desse álcool. Ou seja, o consumo excessivo de qualquer tipo de álcool é prejudicial ao nosso cérebro."
Para o neurologista M. Edip Gurol, autor senior do estudo publicado na Neurology, a triagem rotineira para uso de álcool deveria ser incorporada ao atendimento clínico e hospitalar. Segundo ele, reduzir a ingestão pode não apenas diminuir o risco de hemorragia, mas frear a progressão da doença dos pequenos vasos, que está ligada a declínio cognitivo, derrames recorrentes e perda funcional. "É necessário integrar intervenções voltadas ao estilo de vida às estratégias de prevenção do AVC, especialmente em pacientes com múltiplos fatores de risco."
