Enquanto Brasil registra prejuízo de até R$ 1 bilhão com invasão hacker, evidenciam-se os desafios de como transformar ameaça cibernética em oportunidade de evolução tecnológica
O ataque cibernético que abalou o sistema financeiro nacional nesta semana, com prejuízos estimados entre R$ 800 milhões e R$ 1 bilhão, reacende um debate crucial sobre a segurança digital no Brasil. Enquanto instituições financeiras e o Banco Central correm para conter os danos do que já é considerado um dos maiores ataques da história do país, um caso emblemático de Caxias do Sul emerge como exemplo de resiliência e inovação diante de ameaças similares.
Em maio de 2019, o registrador de imóveis Manoel Valente Figueiredo Neto, titular do Cartório de Registro de Imóveis da 2ª Zona de Caxias do Sul, enfrentou situação semelhante quando hackers sequestraram os dados do cartório e exigiram US$ 1 milhão em bitcoins para devolvê-los. A resposta de Valente, no entanto, foi radicalmente diferente da maioria: ao invés de ceder à extorsão, ele desenvolveu seu próprio sistema. A partir disso, iniciou-se todo um processo de reorganização das atividades de todos os registradores de imóveis do Brasil.
"O mês em que renasci", declarou Valente à época, referindo-se ao período intenso de desenvolvimento do Sistema Manoel Valente (SMV), uma solução tecnológica própria e sem comercialização que transformou o cartório em referência nacional na prestação de serviços e de segurança digital. A decisão de não negociar com criminosos e buscar solução própria provou-se visionária para sua categoria profissional que, conjunto a pandemia da Covid que assolou o mundo, se viu mobilizada para prestar serviços digitais por meio de uma organização nacional que atendesse a inovação com segurança de dados.
Foi assim que em 16 de abril de 2020, as entidades nacionais de representação dos registradores de imóveis convocaram os oficiais de todo o país, sob a supervisão da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, para a Assembleia Geral que resultou na aprovação do estatuto do Operador Nacional do Registro Eletrônico de Imóveis (ONR).
O ONR implementa e operacionaliza o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) em âmbito nacional, integrando os cartórios de registro de imóveis do Brasil. É responsável por padronizar e unificar o registro de imóveis eletrônico em todo o país, facilitando o acesso e a eficiência dos serviços relacionados ao registro de imóveis.
O recente ataque à C&M Software (CMSW), empresa de tecnologia que conecta bancos menores aos sistemas PIX do Banco Central, afetou pelo menos seis instituições financeiras. Criminosos utilizaram credenciais de clientes para acessar fraudulentamente os sistemas, permitindo o acesso indevido a contas de reserva. O Banco Central foi forçado a determinar o desligamento do acesso das instituições às infraestruturas operadas pela empresa.
A dimensão do ataque reflete uma tendência alarmante: segundo a Check Point Research, o Brasil registrou um aumento de 95% nos ciberataques no terceiro trimestre de 2024, com organizações sendo atacadas 2.766 vezes semanalmente. O país já é considerado o segundo com mais ataques cibernéticos no mundo, com 1.379 golpes por minuto.
A experiência de Manoel Valente em 2019 antecipou muitos dos desafios que o setor financeiro enfrenta hoje. "Contatei com o sistema anterior, porém, não obtive resposta sobre a recuperação integral dos dados. Todas as culpas foram direcionadas ao hacker. Resolvi tomar atitudes, já que a responsabilidade é exclusiva do titular da delegação pública", relatou o registrador na época.
A solução encontrada por Valente baseou-se em princípios que hoje são considerados fundamentais para a segurança cibernética: backup externo diário, desenvolvimento de sistema próprio com códigos específicos e uma cultura organizacional voltada para a eficiência e prevenção. “A segurança digital não é apenas barreira de proteção, é campo fértil para inovação. Ao enfrentarmos os riscos com estratégia, ética e tecnologia, transformamos vulnerabilidades em soluções e desafios em oportunidades. Que cada tentativa de invasão seja impulso para fortalecer sistemas, aprimorar processos e construir o futuro mais seguro e resiliente. A verdadeira evolução tecnológica acontece quando aprendemos com o perigo e respondemos com o progresso”, assegura Manoel.
Os números são alarmantes: o Brasil sofreu 103 bilhões de tentativas de ataques cibernéticos em 2022, representando 30% dos casos registrados em toda a América Latina e Caribe. O custo médio de uma violação de dados no país é de R$ 6,75 milhões, segundo relatório da IBM.
A pesquisa da ManageEngine revela que empresas brasileiras enfrentaram ataques de segurança alimentados por Inteligência Artificial Generativa em 2023, com profissionais do setor relatando aumento significativo no nível de estresse devido ao crescente número de questões de segurança.
Lições do pioneirismo gaúcho
O caso de Manoel Valente oferece lições valiosas para o momento atual. Preparação, segundo ele, é um dos primeiros passos. Hoje em dia, proteger nossos dados na internet é essencial. Algumas dicas envolvem usar senhas fortes e diferentes para cada conta (e ativação da verificação em duas etapas); nunca clicar em links suspeitos ou enviados por desconhecidos; manter antivírus atualizado e evitar usar Wi-Fi público para acessar dados sensíveis; fazer backups regularmente e cuidar das permissões que os aplicativos pedem.
A autonomia tecnológica, com o desenvolvimento de soluções próprias, quando possível, pode oferecer maior controle e segurança e, talvez a principal, que é não ceder à extorsão, já que a decisão de não pagar o resgate dos dados não apenas evitou financiar e encorajar os criminosos a novos ataques, mas forçou a busca por soluções inovadoras, transformando a crise em oportunidade, algo que deveria ser primordial na segurança digital. Como afirmou Manoel Valente, "decidi tomar rédea da situação", transformando um ataque devastador em oportunidade de modernização para todo um segmento profissional. Espera-se que no cenário atual as instituições financeiras também decidam por tomar as rédes da situação.
A experiência pioneira de Caxias do Sul demonstra que é possível não apenas sobreviver a ataques cibernéticos, mas emergir mais forte e preparado. Exemplo individual que serviu como base para toda uma categoria profissional acordar e se movimentar. Em um momento em que o Brasil enfrenta uma das maiores crises de segurança digital de sua história, o exemplo de Valente serve como inspiração e roteiro para instituições que buscam proteger seus dados e os de seus clientes, e progredir para o bem de todos.
