Visão do Direito

STF e os efeitos retroativos do casamento

" A decisão, ao ter repercussão geral, criará uma diretriz nacional para todos os tribunais brasileiros — o que garante segurança jurídica e isonomia"

Por Rudyard Bruno da Silva Barros Rios* — O Supremo Tribunal Federal iniciou a análise de um tema que pode transformar profundamente o tratamento jurídico das uniões afetivas no país: a possibilidade de que o casamento civil produza efeitos retroativos à data do início da união estável. Trata-se do Tema 1313 de repercussão geral, cuja decisão terá impacto em milhares de famílias brasileiras.

Como juiz de paz e alguém que acompanha de perto a formalização dos vínculos conjugais, avalio essa discussão como um avanço necessário para o aperfeiçoamento do direito de família, sobretudo no reconhecimento da pluralidade das formas de constituição da família no Brasil.

O caso levado ao STF envolve um casal que vive em união estável desde 1995, tem dois filhos, e somente após muitos anos resolveu formalizar o casamento civil. Agora, eles buscam o reconhecimento de que os efeitos patrimoniais e sucessórios desse casamento retroajam à data em que começaram a viver juntos, mais de duas décadas atrás.

A pergunta central do julgamento é se é possível converter a união estável em casamento com efeitos jurídicos desde o início da convivência? A decisão, ao ter repercussão geral, criará uma diretriz nacional para todos os tribunais brasileiros — o que garante segurança jurídica e isonomia.

Por que isso é relevante?

A distinção entre união estável e casamento ainda gera tratamentos jurídicos diferentes, especialmente no que diz respeito a:

  • Regime de bens aplicado;
  • Direito à herança;
  • Partilha patrimonial em caso de separação ou falecimento;
  • Proteção do cônjuge ou companheiro sobrevivente;

Atualmente, a união estável segue, salvo pacto em contrário, o regime da comunhão parcial de bens, e sua formalização nem sempre altera esse regime. Já o casamento permite ao casal escolher previamente o regime de bens, conforme sua realidade e seus interesses — inclusive o da separação total.

Permitir que o casamento produza efeitos desde o início da união respeita a autonomia da vontade do casal, que poderá escolher, por exemplo, aplicar desde o início o regime da separação de bens, ou garantir desde já direitos sucessórios, como o direito à herança de imóveis particulares, que a jurisprudência muitas vezes nega aos companheiros.

O que muda na prática?

Caso o STF acolha a tese da retroatividade, casais que vivem juntos há anos — e que decidem formalizar sua união — poderão solicitar que o casamento valha juridicamente desde o início da vida em comum, respeitando a realidade da convivência afetiva e familiar que já existia.

Isso pode beneficiar casais que sempre viveram como se casados fossem, mas que, por razões econômicas, burocráticas ou pessoais, postergaram a formalização.

Também poderá ser uma solução para corrigir injustiças patrimoniais que surgem após décadas de convivência, quando um dos companheiros falece e o outro não tem direito à totalidade dos bens que ajudou a construir.

Minha visão como juiz de paz

Como alguém que celebra casamentos, vejo com bons olhos essa possibilidade de reconhecimento da retroatividade. A formalização do casamento não é o início do amor ou da parceria — muitas vezes, é apenas o reconhecimento formal de uma história que já vem de longe.

O direito deve acompanhar a realidade. E a realidade brasileira é marcada por uniões estáveis duradouras, muitas delas mais sólidas do que casamentos formalizados rapidamente. Negar efeitos retroativos a essas uniões pode significar ignorar anos de esforço conjunto, de construção familiar e patrimonial.

A eventual decisão favorável do STF não impõe nada — apenas abre uma possibilidade para quem desejar fazer essa opção. E mais: ela preserva a autonomia dos casais, permitindo que a retroatividade seja aplicada mediante requerimento e com consenso entre as partes.

Conclusão

Se o Supremo autorizar o casamento com efeitos retroativos à união estável, estará apenas reconhecendo juridicamente o que, na prática, já é família há muito tempo. Trata-se de uma medida de justiça, de segurança e de respeito à história conjugal de tantos brasileiros.

Como juiz de paz, defendo que o Estado não deve apenas formalizar relações, mas também valorizar e proteger os laços afetivos e familiares já consolidados. A retroatividade, quando desejada pelo casal, será um poderoso instrumento para isso.

Juiz de paz pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT)*

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