A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que propõe o fim do foro por prerrogativa de função — o chamado foro privilegiado — voltou ao centro do debate na Câmara dos Deputados após a obstrução promovida pela oposição no Congresso na última semana. Apresentada em 2013 pelo então senador Álvaro Dias (PV-PR), a medida busca restringir de forma drástica o alcance do foro especial.
A proposta foi aprovada pelo Senado em 2017, com ampla concordância, mas permaneceu parada por anos na Câmara, aguardando inclusão na pauta de votação. Nos últimos meses, o tema voltou a ganhar destaque, impulsionado por investigações e julgamentos envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro e os casos envolvendo suspeitas de irregularidades na liberação de emendas parlamentares. Deputados e senadores passaram a defender a PEC como estratégia para transferir processos para a primeira instância e se blindar do rigor dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Atualmente, cerca de 55 mil autoridades no Brasil têm acesso ao foro privilegiado, que garante julgamento apenas por tribunais superiores, inclusive para crimes comuns — ou seja, delitos que podem ser cometidos por qualquer pessoa, sem relação com o cargo ocupado. O foro por prerrogativa de função já foi considerado um privilégio, daí o motivo de ser popularmente chamado assim. Nos tribunais superiores, as denúncias andam com mais lentidão e exigem aprovação do colegiado para serem instauradas as ações penais. Hoje, políticos consideram a regra desfavorável por perder instâncias de recursos.
O advogado e professor de direito Alexandre Knopfholz explica que o foro privilegiado é a possibilidade de determinadas autoridades serem julgadas diretamente por tribunais superiores, e não pela Justiça de primeira instância. "Essa competência especial não é um privilégio pessoal, mas sim uma prerrogativa de função: existe em razão do cargo, não da pessoa que o ocupa", afirma.
Segundo ele, a justificativa para essa prerrogativa é proteger ocupantes de cargos de alta relevância, como presidente, governadores, senadores ou ministros, de pressões políticas indevidas. "A ideia é que um juiz de primeira instância, ao julgar um presidente da República, por exemplo, poderia sofrer influências externas que comprometessem sua imparcialidade", explica.
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A PEC extingue o foro especial para crimes comuns e, para isso, altera os artigos 5º, 37, 96, 102, 105, 108 e 125 da Constituição Federal, além de revogar o inciso X do artigo 29 e o §1º do artigo 53, que garantiam foro privilegiado a autoridades municipais e parlamentares. O benefício seria mantido apenas para cinco cargos: presidente da República, vice-presidente, presidentes da Câmara e do Senado e presidente do Supremo Tribunal Federal.
Knopfholz ressalta que o tema é historicamente instável no Brasil. Nos últimos 20 anos, o STF mudou de entendimento pelo menos cinco vezes, passando por súmulas editadas na ditadura, alterações legislativas e reviravoltas jurisprudenciais. Em 2018, por exemplo, no julgamento da Ação Penal 970, o ministro Luís Roberto Barroso restringiu o foro a crimes cometidos no exercício e em razão do cargo. Mais recentemente, no caso envolvendo Bolsonaro, o Supremo voltou a alterar sua interpretação, o que gerou insegurança jurídica.
Segundo o advogado, para os defensores da PEC, o foro privilegiado é um privilégio injustificado, pois cidadãos comuns enfrentam todo o processo desde a primeira instância, enquanto autoridades começam diretamente nos tribunais superiores. Já os críticos veem motivação política imediata: caso aprovada, investigações contra Bolsonaro que ainda não tramitam no STF, poderiam ser remetidas à primeira instância, afastando o caso da Corte.
Apesar disso, o ex-presidente não seria beneficiado de forma imediata. A PEC não tem efeito retroativo, e processos já instaurados no STF permaneceriam na Corte. Para que Bolsonaro pudesse ser julgado por instâncias inferiores, seria necessário aprovar uma nova alteração que garantisse retroatividade, medida que enfrentaria forte resistência política e jurídica.
Knopfholz defende um modelo intermediário: manter o foro especial apenas para crimes de responsabilidade cometidos durante e em razão do cargo, com a prerrogativa cessando junto com o mandato. "Essa foi a linha seguida pelo STF na Ação Penal 970 antes da recente mudança. Limitar o foro dessa forma preserva a proteção institucional necessária, sem transformá-lo em um escudo para delitos comuns ou sem relação com as funções do cargo", conclui.
No caso da denúncia da tentativa de golpe que deverá ser julgada até o fim de setembro — a defesa de Bolsonaro entregou ontem as alegações finais — a mudança nas regras do foro não tirariam a competência do STF para julgamento. O processo tramita na Corte porque o STF é vítima dos atos golpistas. O artigo 43 do Regimento Interno do STF, que tem força de lei, prevê que se ocorrer infração penal em sua sede ou dependências, o presidente deve instaurar inquérito.
A Primeira Turma também afastou a preliminar de incompetência do Supremo para julgar o caso por ausência de autoridade com foro na Corte. Por maioria, os ministros consideraram que a jurisprudência do STF é de que, nos crimes praticados no exercício do cargo e em razão das funções, a prerrogativa de foro se mantém mesmo após o afastamento da autoridade, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois do fim do exercício do cargo.
O ministro Alexandre de Moraes, relator do processo, ressaltou ainda que o STF reafirmou sua competência para processar e julgar todos os casos relacionados à tentativa de golpe de Estado e ao 8 de janeiro em 1494 ações. O ministro Luiz Fux ficou vencido, ao defender que a competência do STF para julgar réus que não exercem função pública não é tema pacífico na Corte.
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