A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) condenou, na última quinta-feira, o núcleo central da Ação Penal (AP) 2668 pela tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022. Ao definir a dosimetria, o colegiado aplicou penas altas a todos os réus, com exceção de Mauro Cid, que recebeu sanção significativamente mais branda em razão do reconhecimento de seu acordo de colaboração premiada, sendo condenado à pena alternativa de prisão inferior a dois anos em regime aberto.
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Na mesma decisão, o ministro Alexandre de Moraes determinou a restituição dos bens apreendidos de Mauro Cid, estendendo os benefícios ao pai, à esposa e à filha mais velha do colaborador, além de determinar à Polícia Federal a adoção de medidas para garantir a segurança dele e de seus familiares. "O Estado não pode, após receber a colaboração, abandonar o colaborador", justificou o ministro. Assim, foram reconhecidos todos os benefícios previstos no acordo.
Ao fixar a dosimetria, Moraes afastou a possibilidade de perdão judicial e reiterou que, conforme já decidido pela Corte, não cabe indulto presidencial, anistia do Congresso Nacional ou perdão judicial em crimes contra a democracia. Segundo o relator, embora os Três Poderes possam conceder diferentes espécies de clemência constitucional, tais instrumentos não podem ser utilizados para beneficiar tais crimes. "Obviamente, esses institutos não podem ser utilizados contra a Constituição, contra o Estado Democrático de Direito", afirmou.
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De acordo com o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, a delação premiada surgiu como um instrumento de defesa baseado em um requisito fundamental: a espontaneidade. "Ou seja, trata-se de uma decisão pessoal do acusado em colaborar com a Justiça. Não pode haver coação, pressão ou troca ilícita", afirma.
No entanto, segundo Kakay, esse instituto acabou sendo desvirtuado na Operação Lava-Jato. "Houve um verdadeiro processo de 'prostituição' da delação, como reconheceu um subprocurador em audiência no STJ, ao admitir que as prisões preventivas prolongadas eram utilizadas para forçar os investigados a colaborar", relata. De acordo com a Procuradoria-Geral da República (PGR), foram homologados 209 acordos de delação premiada no âmbito da Lava-Jato.
A advogada criminalista, mestre em direito e presidente da Abracrim-DF, Gabriela Benfica, explica que a colaboração premiada não é uma prova em si, mas um meio de obtenção de prova. As declarações do colaborador precisam ser corroboradas por outros elementos capazes de sustentar a condenação ou, mesmo, o oferecimento da denúncia. "Assim, o colaborador relata o que sabe e, a partir daí, as autoridades buscam os elementos capazes de comprovar ou elidir essa versão apresentada", detalha.
Como funciona
Para que uma delação premiada seja considerada válida, a lei exige a voluntariedade da colaboração, ou seja, ela não pode resultar de coação. A voluntariedade, contudo, não significa necessariamente espontaneidade: o acordo pode partir da iniciativa do colaborador ou ser proposto pelas autoridades de persecução penal, desde que a adesão seja livre e consciente.
Além disso, é indispensável que o agente esteja assistido por advogado, renuncie ao direito ao silêncio e narre integralmente os fatos ilícitos de que participou, desde que relacionados à investigação, comprometendo-se a dizer a verdade e não omitir informações relevantes.
A colaboração só terá validade se for efetiva, isto é, se dela resultar pelo menos um dos seguintes objetivos:
I - identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações por eles praticadas;
II - revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III - prevenção de novas infrações penais decorrentes das atividades criminosas;
IV - recuperação total ou parcial do produto ou proveito das infrações;
V - localização de eventual vítima, com garantia da preservação de sua integridade física.
De acordo com Kakay, o Ministério Público não pode oferecer a delação como forma de coação. Contudo, ele afirma que, na Lava-Jato, isso se tornou prática recorrente. "Sob a coordenação do então juiz Sergio Moro, em conluio com procuradores, prendia-se apenas para forçar a colaboração. Foi essa distorção que corroeu a credibilidade da delação premiada e marcou profundamente o desgaste da própria Operação Lava-Jato", declara o advogado.
"Cito um exemplo: quando atuei como advogado de Alberto Youssef. O MP procurou Youssef na cadeia e afirmou que ele teria de delatar, sob ameaça de intensificar as investigações contra ele e contra sua família. Esse tipo de conduta não pode existir", compartilha Kakay.
Gabriela Benfica explica que, independentemente de ser proposta pelas autoridades persecutórias ou pela defesa do colaborador, a colaboração é formalizada por meio de um termo de colaboração e de confidencialidade, de natureza contratual. Nesse instrumento, as partes podem negociar os benefícios a serem concedidos em razão da colaboração.
Nos termos do art. 4º da Lei nº 12.850/2013, ao firmar um acordo de colaboração premiada, o juiz poderá, a requerimento das partes, conceder perdão judicial, reduzir a pena privativa de liberdade em até dois terços ou substituí-la por restritiva de direitos, desde que o colaborador tenha contribuído de forma efetiva e voluntária para a investigação e o processo criminal.
Além disso, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se a proposta de colaboração disser respeito à infração cuja existência ainda não fosse de seu conhecimento, desde que o colaborador não seja o líder da organização criminosa e seja o primeiro a prestar colaboração efetiva nos termos da lei.
Kakay avalia que os tribunais têm conduzido de forma razoável a delimitação do uso da delação premiada e que a própria jurisprudência acabou por restringir significativamente o instituto. Ele destaca ainda que a colaboração premiada altera radicalmente a estratégia processual, já que o colaborador passa a atuar quase como um assistente de acusação.
A advogada Gabriela Benfica complementa: "Na colaboração, a função da defesa limita-se a negociar um bom benefício e a fiscalizar o cumprimento do acordo, pois há confissão e renúncia ao direito de presunção de inocência e ao silêncio."
Ela ressalta que esse modelo se distancia por completo da defesa criminal tradicional, cujo objetivo é assegurar a presunção de inocência, a ampla defesa, o devido processo legal, a paridade de armas e todas as demais garantias constitucionais, visando à absolvição ou, ao menos, a uma pena justa.
Valeu a pena delatar?
No caso do tenente-coronel Mauro Cid, seu acordo de colaboração premiada foi alvo de intensos questionamentos durante as sustentações orais das defesas dos sete réus. Os advogados alegaram que o militar teria sido coagido a depor, além de o classificarem como "mentiroso" e "irresponsável". O advogado José Luiz Mendes de Oliveira Lima chegou a afirmar que Cid teria apresentado "15 versões diferentes" sobre os fatos investigados.
Gabriela Benfica explica que as críticas se concentraram na suposta coação, diante da postura do relator durante a audiência, quando advertiu severamente o colaborador de que poderia retornar à prisão, caso faltasse com a verdade. Ela também destaca episódios em que o ministro apontou contradições e omissões, frisando que documentos como celulares, mensagens e laudos periciais revelaram inconsistências no conteúdo da colaboração.
Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes afastou a tese de coação, reforçando a voluntariedade da colaboração e observando que as defesas confundiram os oito primeiros depoimentos com oito delações distintas e contraditórias. "Beira a litigância de má-fé dizer que os oito primeiros depoimentos foram oito delações contraditórias. Ou não leram os autos, ou beira o total desconhecimento dos autos", criticou o ministro. No mesmo sentido, os ministros Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin também votaram pela manutenção da validade do acordo.
Para o advogado Kakay, esse é um exemplo de delação premiada bem-sucedida. Apesar de ter sido duramente atacado pelas defesas cujos clientes foram citados, o acordo foi validado pelo Supremo e demonstrou eficácia. "Cid, inclusive, já teria direito a pleitear a liberdade, uma vez que permaneceu preso por período superior ao previsto em seu acordo", afirma.
Segundo o jurista, esse caso representa um incentivo à consolidação do instituto da colaboração premiada, conduzido desta vez, ao que tudo indica, dentro da legalidade, com ampla discussão e respeito ao direito de defesa. "Apesar das críticas, o Supremo manteve a validade integral do acordo, reforçando sua legitimidade", conclui.
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