Visão do Direito

O carbono agora tem CPF

"No levantamento mais recente, o sistema apontou que 95% do desmatamento registrado na Amazônia tem indícios de ilegalidade. Esse número não vem de investigações pontuais, e sim de monitoramento contínuo, automatizado e público"

Por Ticiano Gadêlha* — Em 2023, uma análise feita com inteligência artificial mostrou que parte da produção de um frigorífico brasileiro vinha de áreas com desmatamento ilegal. A informação apareceu quando o sistema cruzou imagens de satélite com dados públicos de transporte e registros fiscais. Não houve operação policial, nem denúncia formal. Os dados falaram por si, e o contrato com compradores europeus não avançou.

Esse tipo de situação mostra uma mudança concreta na agenda climática: sustentabilidade deixa de depender de declarações voluntárias e passa a ser avaliada por evidências. A COP30, realizada em Belém, chegou exatamente nesse momento em que o discurso perde espaço para a capacidade de comprovar.

O Brasil já opera plataformas que dão sustentação técnica a essa transição. O MapBiomas utiliza inteligência artificial para monitorar mudanças na vegetação por meio de imagens de satélite. Quando identifica alteração em uma área, cruza essa informação com o Cadastro Ambiental Rural e verifica se existe autorização. No levantamento mais recente, o sistema apontou que 95% do desmatamento registrado na Amazônia tem indícios de ilegalidade. Esse número não vem de investigações pontuais, e sim de monitoramento contínuo, automatizado e público.

Outro exemplo é o PrevisIA, criado pelo Imazon com apoio da Microsoft. A plataforma identifica fatores que antecedem o desmatamento, como abertura de estradas clandestinas e expansão de áreas de risco. Com base nesses padrões, estima onde a derrubada pode ocorrer. Em 2023, mais de 80% das áreas indicadas pelo sistema foram efetivamente desmatadas meses depois. O diferencial não está apenas em registrar o impacto, mas em permitir ações antes que ele aconteça.

Esses dados já estão influenciando decisões econômicas fora do Brasil. A partir de 2025, a União Europeia exigirá comprovação de origem sem desmatamento para importar produtos, como carne, soja, café, cacau e madeira. A verificação será feita digitalmente, usando georreferenciamento e comparação com imagens de satélite. Relatórios de sustentabilidade sem rastreabilidade deixam de ter valor. Empresas precisarão apresentar evidências consistentes.

O mesmo movimento está avançando no mercado de carbono. Modelos baseados em inteligência artificial permitem estimar, com cada vez mais precisão, quanto carbono uma área preservada é capaz de capturar. Quanto menor a incerteza, maior a confiança de investidores e maior o valor do crédito. O Brasil, por abrigar a maior floresta tropical do planeta, tem potencial de liderar essa cadeia, desde que apresente dados sólidos.

A COP30 ocorre exatamente no ponto em que essa mudança se torna operacional. Em vez de debates baseados em intenções ou projeções abstratas, o foco passa a ser o que pode ser monitorado e comprovado. A Amazônia deixa de ser referência simbólica e passa a ser fonte de informação. Metas climáticas, investimentos e acesso a mercados serão influenciados pela qualidade e pela transparência desses dados. Países, empresas e cadeias produtivas com rastreabilidade terão vantagem clara. Quem não conseguir comprovar terá mais dificuldade para competir, financiar e vender.

A inteligência artificial não resolve o problema climático, mas elimina um obstáculo que sempre atrasou avanços: a dificuldade de verificar a realidade. Quando é possível rastrear a origem de um produto, acompanhar mudanças no uso do solo ou estimar a captura de carbono, o debate deixa de depender de versões e passa a depender de responsabilidade. Na COP30, dados deixam de ser instrumento de análise e passam a ser instrumento de decisão.

Advogado especialista em propriedade intelectual, diretor da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI) e fundador do escritório Torres Gadêlha*

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