Se fosse viva, Clarice Lispector se espantaria com a condição de celebridade que, à revelia, alcançou na internet. Ela é um dos nomes mais citados nas redes sociais: “O anonimato é suave como um sonho”, afirmou Clarice: “Estou precisando deste sonho”. O próximo 10 de dezembro marca a passagem do centenário de Clarice e ela será celebrada ao longo do ano pela Editora Rocco, com o relançamento de toda a obra, em nova edição. Com projeto gráfico do premiado designer Victor Burton, os 18 volumes terão capas criadas a partir de pinturas da escritora e serão enriquecidos por textos de grandes críticos e de leitores apaixonados pela obra de Clarice.
Os cinco primeiros volumes (Perto do coração selvagem, O lustre, Cidade sitiada, A bela e a fera e A maçã no escuro) já foram lançados. A reedição continua até culminar em 10 de dezembro. Clarice constitui um caso raro no Brasil: suas obras nunca saíram de catálogo: “Não é um resgate; é uma celebração”, comenta Pedro Vasques, coordenador da reedição da obra de Clarice: “Vamos revelar algo que pouca gente conhece: o trabalho de artes plásticas. No fim da vida, em 1975 e 1976, Clarice se dedicou também à pintura”.
A conexão entre artes plásticas e literatura é intensa na obra de Clarice, como ela deixa claro em sua correspondência. Não se considerava pintora, mas tinha grande prazer em imprimir imagens nas telas: “Para ela, pintar era tão importante quanto escrever”, observa Vasques. “A personagem-narradora de Água viva era uma escritora que se transforma em pintora. Clarice era amiga de Maria Bonomi, Scliar, Cheschiatti, entre outros artistas plásticos. Para escrever, criava imagens poderosas. Ela parece escrever como se fosse uma artista plástica, como se pintasse com as palavras”.
Clarice ficava impaciente e angustiada com as especulações teóricas dos críticos em relação à sua obra. Em respeito a esse traço da escritora, os textos de análise foram inseridos no fim das obras, como posfácios, com a visão dos críticos ou o depoimento de amigos: “O projeto de reedição tem qualidade estética, mas também conteúdo novo”, explica Pedro Vasques: “Clarice nunca foi ligada a visões acadêmicas e não gostava de tutelar o leitor, que, ao fim da leitura, poderá confirmar a impressão pessoal ou perceber outras possibilidades de compreensão do texto. Assim, a edição fica mais dentro do estilo que Clarice gostaria”.
Talento excepcional
Clarice estreia com três romances: Perto do coração selvagem, aos 22 anos, O lustre, três anos depois, e Cidade sitiada, no mesmo intervalo de tempo: “Faz tudo isso antes dos 30 anos”, comenta Vasques. “Geralmente, o autor começa pelo conto, vai à novela e, só então, parte para o romance. Não é exagero dizer que ela era um talento excepcional”.
Rubem Braga dizia que Clarice era boa em livro, mas fazia restrições às crônicas da escritora. Ao ser convidada pelo Jornal do Brasil para ser colunista, ela pediu conselhos ao amigo. Braga considerou os antológicos textos sobre Brasília (Visão do esplendor e Brasília) como as melhores crônicas de Clarice: “Isso é uma coisa bem interessante”, comenta Vasques. “Porque o Benjamim Moser os incluiu na coletânea de contos. Clarice desconcertava Braga porque não conseguia ser uma cronista linear. Existem vários textos que ela publicou como contos que foram classificados de crônicas. E, também, o inverso. Ela não tinha respeito aos limites dos gêneros literários. Quando Clarice veio a Brasília tudo era novo e diferente. Dificilmente, falava sobre o Rio de maneira explícita. Brasília causou profunda impressão nela por ser um sonho que estava se transformando em realidade”.
Mulher libertária
Vasques reconhece que existe muita mistificação e distorção em torno da figura de Clarice no mundo da internet. Mas, ao mesmo tempo, pondera que houve um amadurecimento do público para a compreensão da escritora: “Vejo Clarice de uma maneira semelhante a Frida Kahlo. As pessoas usam camisetas com as imagens delas e, algumas vezes, nem tem consciência do significado real das respectivas obras. Tanto uma quanto outra tiveram vidas difíceis. Tiveram que criar filhos com dificuldade. Mas elas transformaram o sofrimento em arte. São símbolos da mulher guerreira, discreta, mas verdadeira. Essas obras são mais valorizadas hoje do que quando elas estavam vivas. Porque acho que o público amadureceu”.
Quando estudou e se formou em direito, Clarice era uma das poucas mulheres brasileiras no ensino universitário, lembra Vasques. Não existiam mais do que 20 mil estudantes universitários. Hoje, existem mais de 100 milhões de estudantes. Muitos livros dela foram adotados pelas escolas, muitos caem nos exames do Enem. “Então, esse público é muito mais preparado, intelectualmente, para compreender Clarice. Até 1962, a mulher tinha de pedir permissão para trabalhar. Então, Clarice foi uma mulher muito à frente do seu tempo. A Joana, personagem de Perto do coração selvagem, não aceita o mundo machista e patriarcal. Quer se afirmar como ser humano livre, independente. A dimensão libertária da obra dela está sendo compreendida hoje. E, não só no Brasil, Clarice está sendo publicada em mais de 40 países. Estão conseguindo captar a sua potência feminina, embora ela nunca fosse feminista. Fala de coração a coração, não é qualquer autora que consegue tocar o público dessa maneira”.
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