Cinema

Glauber Rocha e Orson Welles seguem geniais em Cannes e Veneza

Mortos nos anos de 1980, Glauber e Welles terão releituras de obras, em 2020, com presença nos festivais de Cannes e Veneza

Ricardo Daehn
postado em 10/08/2020 10:36 / atualizado em 10/08/2020 14:04
Glauber Rocha em Antena da raça -  (crédito: Paloma Cinematografia)
Glauber Rocha em Antena da raça - (crédito: Paloma Cinematografia)

Ao apostar no entendimento do povo brasileiro nos campos do mítico e das parábolas, e sempre promovendo inovação, o cineasta Glauber Rocha se afirmou na eternidade, como demarca Joel Pizzini, um dos maiores estudiosos do diretor brasileiro mais conhecido no mundo quando o tema é cinema. A cada década — desde a morte, no ano de 1981, quarentão — Glauber, como observa Pizzini, encabeça um “filme-vida” sem roteiro concluso. Segue, assim, como autor que tocava o coração das pessoas, a partir de “uma narrativa visceral, com método que provocava o transe”. Em 2020, mais uma reativação da genialidade de Glauber está nos holofotes, com a escolha do longa Antena da raça, dirigido pela filha dele, Paloma Rocha (em parceria com Luis Abramo), para seleção no Festival de Cannes. O filme, agregado à lista de clássicos do festival francês, será mostrado, em outubro, na cidade de Lyon.

Paloma Rocha com o pai, o cineasta Glauber Rocha
(foto: Paloma Rocha/ Arquivo pessoal)

Por duas vezes concorrente em Cannes, nos anos 1970 e 1980, o cineasta e crítico Arnaldo Jabor destaca que Glauber Rocha completou uma imagem geral do Brasil que não existia. “Trouxe miséria, sertão, cangaço, uma forma narrativa nova no cinema mundial; tudo que tinha sido apontado, na literatura, por Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Glauber transformou a fome numa estética. Caetano Veloso e cinema novo, e Zé Celso (Martinez Corrêa, o dramaturgo) são (alguns) filhos”, avalia. Não ao acaso, Caetano e José Celso aparecem no documentário de Paloma Rocha. “Glauber optou pela estética de conceber uma obra atemporal, com inquietações filosóficas, abordando temas existenciais (Deus e o diabo) com uma linguagem operística que transcendeu à temática regional. Dialogou com seu tempo, com a psicanálise e, no mesmo plano, com os célebres diretores Buñuel, Antonioni e Pasolini”, reforça Joel Pizzini.

Um patrimônio nacional

“Antena da raça não é um filme tributo e nem um filme sobre o passado”, apressa-se em detalhar para o Correio, Paloma Rocha. Ela concebeu o filme, em sintonia com o programa televisivo Abertura, exibido na extinta TV Tupi. No miolo do longa-metragem está a essência do pai, sempre preconizando conceitos como os da liberdade e rupturas. “Com a pandemia, acho que Glauber estaria recluso, cuidando da saúde. Mas, diante do pandemônio, ele reclamaria, justo o que é um pouco o conteúdo do filme. Trazemos a voz de Glauber para os dias de hoje, com questões que não mudaram muito. Há um debate sobre a luta de classes, o colonialismo, presente até hoje, e que permeia a obra dele, num diálogo com pessoas na rua”, explica a cineasta, sempre empenhada em preservar o legado do pai. Na montagem, o filme traz entrevistas, sem intermediações. Participam da obra personagens de filmes e populares, saídos das ruas. Num rompante, no novo filme, Glauber dispara: “Não quero saber de cinema: quero ouvir a voz do homem”.

Desenho criado por Glauber Rocha criado para a filha Paloma
(foto: Paloma Rocha/ Arquivo Pessoal)

Joel Pizzini relembra que, ao ser questionado sobre a dimensão popular de seu trabalho, Glauber respondia ‘uma coisa é conquistar o público, a outra é explorar o público’. “Glauber foi artista visionário, que através de filmes como Câncer, Claro e Idade da Terra antecipou linguagens incorporadas pela arte contemporânea como a performance e a instalação, sempre com uma perspectiva política e libertária”, completa o codiretor de Anabazys (sobre temas glauberianos).

Em nada as fofocas ou picuinhas encantavam o cineasta. Se vivo fosse, Paloma acredita que ele destituiria a estrutura de poder fracassada, numa escala não apenas de país, mas de mundo. Num jogo em que pessoas ocupariam uma espécie de tabuleiro social, em escala simbólica e intelectual, Paloma acredita que Glauber tenha criado personagens arquetípicos: um cara representa o poder; o outro, o negro; um terceiro personaliza o canalha. “Não há psicologismos burgueses. Nos filmes dele seria impossível ouvir: “Vamos ao shopping, querida? (risos)”. Glauber se detinha nas necessidades fundamentais ao homem. Tem um momento, no Antena da raça, em que ele diz: ‘Vamos acabar com esta loucura, com partidos, já que o povo precisa de educação, saúde e cultura. Glauber falava de modo simples num recado direto”, analisa a filha.

Figura de ponta da novidade e da revolução empreendida pelo Cinema Novo, Glauber se aplicou a, fora dos estúdios, filmar o povo, na rua, sem maquiagem. Também não gostava de retoques no perfil dele ou mesmo das exaltações em homenagens. Antes de ir para Portugal (numa jornada em que padeceu, em 1981), Glauber disse à Paloma: “Minha filha, nunca me mitifique”. “A relação com ele é sempre direta, sem intermediário. Para um povo que, aos números da pandemia, parece invocar apenas quantidade e estatística, Glauber seria atual voz de peso. No nosso filme, o negro que lava carros, hoje, é ainda o mesmo personagem de Antônio Pitanga (em Câncer, feito em 1968). Enquanto pouco se falava do sonho e das expectativas da massa, num artigo chamado Estética da Fome, Glauber cravava que ‘o povo é um mito da burguesia’. Se hoje as pessoas, em si, perderam o valor — como naquele recente caso do ‘porteiro’, sem nome, sem família e sem identidade —, Glauber sempre olhou as pessoas”, finaliza Paloma.

Uma obra mantida e realimentada: Orson Welles em cena

“O que Orson Welles fez com o cinema foi semelhante ao que Kant (indispensável à filosofia moderna) fez com a filosofia: Welles especulou ‘o que pode o cinema?’ e ‘Quais os limites dele?’. O cinema de Welles pensa o cinema, pensa tudo o que o cinema pode ser. Isso é Cidadão Kane (a obra que deu novo sentido ao cinema, em 1941)”, comenta o professor e escritor, formado pela UnB, Adalberto Müller (autor de Orson Welles: Banda de um homem só). Talento incontido e dono de trajetória artística inconstante, Orson Welles — por muitos, considerado o maior cineasta do mundo —, mesmo morto em 1985, voltará à cena no 77o Festival de Veneza: é dele o longa Hopper/ Welles, feito à época em que Dennis Hopper repondia pela direção do longa The last movie (1971). A exemplo de O outro lado do vento (finalizado pela Netflix, 48 anos depois do pontapé inicial de Welles na fita), Hopper/ Welles dá prosseguimento a um mito.

Orson Welles, criador de Cidadão Kane: a ser revisto em Veneza
(foto: Pierre / Divulgação)

“Genialidade sempre tem relação com a autoria. Cinema requer forte criação coletiva, com trabalho em conjunto. A característica de autoria no cinema, com Welles, continua válida, e é muito forte. É um dos grandes autores, por excelência, da história do cinema, com clara personalidade na obra”, avalia o professor Fernão Pessoa Ramos e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, além de autor do artigo A inclusória pérola brasileira de Orson Welles, sobre a rica, mas desastrosa, passagem de Welles pelo Brasil, nos anos de 1940. “Welles parou a carreira regular e veio ao Brasil com muito dinheiro e grande equipamento. Houve a morte do jangadeiro Jacaré, nas filmagens de É tudo verdade, e ele, praticamente, nunca mais conseguiu filmar em Hollywood. Welles veio de dentro da máquina, fez o grande filme norte-americano até a última raiz do cabelo, Cidadão Kane, e depois sofreu muito na lida com um cinema que reclama apoio de maiores produções do que as alcançadas. Fez a carreira dele, praticamente, com dinheiro próprio, e deixou muitos filmes inconclusos”, explica Fernão.

Dono de um Oscar de melhor roteiro (por Cidadão Kane), experimental até no teatro (Macbeth, só com negros, foi montado por ele, em Nova York), radialista, fundador do Mercury Theatre, ator em mais de uma centena de filmes e criador supremo, no cinema: Welles, a partir da biografia do empresário W.R. Hearst, em Cidadão Kane, cutucou o establishment. “Ele desmascarou as relações entre mídia e poder de uma maneira tão virulenta para os próprios americanos, que acabou se tornando um pária. Se o mundo piorou é porque não demos atenção ao que Welles tentou mostrar: a convivência entre o poder e os grandes conglomerados de informação, a que chamamos mídias”, observa Müller. Na longa lista de méritos, o pesquisador de Welles cita a denúncia do retorno do fascismo (no filme O estranho), o racismo anti-latino dos EUA (A marca da maldade) e o nascimento das fake-news e da pós-verdade (Verdades e mentiras).

Depoimento

Antônio Xerxenesky, escritor

“Acho que Orson Welles sempre vai ser lembrado como o inventor do cinema moderno, o cineasta que construiu o 'dicionário' de todas as técnicas e deu um norte para gerações e gerações de cineastas. Ele está morto há muito tempo, não tem como continuar servindo de bússola para os jovens. Ele inventou o cinema moderno, não o atual; e os filmes se mantêm como obras-primas. Não deixarão de ser grandes. Agora, o futuro será construído por outras vozes, que trarão outras formas de inovação e até mesmo de olhar”

Antonio Xerxenesky, autor de F, um livro inspirado em Orson Welles
(foto: Andre Hilgert/ Divulgação)

 

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