Com o momento do desafio imposto pela pandemia, artistas adotam novos caminhos, a fim de perpetuar a magia do teatro. Seja por meio de um aparato tecnológico que motiva estudantes das artes cênicas a perseguirem o sonho de brilhar no palco, seja pelo incorporar de novas linguagens e ferramentas (em plataformas virtuais), ou ainda diante da celebração artística (em documentários) de coletivos que ressaltam o caráter social das encenações nos palcos, o teatro está tão vivo quanto sempre. Confira!
A interação por base
A divisão de responsabilidade entre atrizes e espectadores impulsiona todo o dispositivo cênico de Para alguém que está me ouvindo. A capacidade da escuta do interlocutor, que é alimentada por cinco atrizes, trouxe 300 espectadores ao projeto. Cada atriz envolvida zela pela manutenção de relações de coleguismo com 60 pessoas desconhecidas. Uma primeira carta encenada mobiliza o espectador em potencial, levando-o a um mergulho inesperado. “Sempre me atentei para a qualidade de um encontro e, agora, encontrar está impossível. O projeto atual nasceu totalmente a partir da pandemia. Vejo como uma possibilidade de digestão da situação, de organização dos próprios sentimentos, e há até um componente de cura. Criamos, de forma conjunta, muitos universos. De certo modo, é um pequeno empurrão rumo ao desconhecido”, observa a performer e diretora Anna Costa e Silva.
Interessada em processos criativos, já dirigiu a série documental Olhar (no Arte 1), além de ter aprofundado pesquisa entre cênicas, artes visuais, vídeos e cinema, muitas vezes dedicadas a intromissões pessoais nas narrativas, borrando fronteiras entre registros reais e ficção. “Com o novo projeto, desestabilizamos papéis pré-estabelecidos entre arte, espectador e performer, compartilhando a vida entre todos. É algo que personaliza totalmente o espectador. O lúdico, as angústias e os pensamentos aderem a possibilidade mútua de criar outras narrativas para passarmos os dias”, avalia.
Muita companhia, na tevê
Casado com a atriz Débora Duboc, premiada pelo desempenho na peça A valsa de Lili, o diretor Toni Venturi viu de perto os efeitos da adaptação do espetáculo para os tempos de pandemia. “Veio o paradoxo de uma peça com conteúdo intimista, em março de 2020, virar um espetáculo midiático, com apoio de câmeras e de dois megatelões”, relembra. Afora a curiosidade, Venturi comanda outro viés de resistência do teatro: é na série de 26 documentários que criou, ao lado da curadora Silvana Garcia, chamada Cena inquieta (exibida pela SescTV; na internet: sesctv.org.br/aovivo). Quase 50 coletivos teatrais e ainda 10 artistas solo sediados em cinco capitais compõem o painel que totaliza quase 25 horas de conteúdo. Em foco estão grupos como Coletivo Negro, Cia. Os Crespos e Tablado de Arruar. “Buscamos trazer um pouco da alma da pesquisa de cada grupo: saber do que estão atrás. Que linguagem desenvolvem? Focamos o teatro negro, a experimentação do teatro social e o teatro de gênero, com questões identitárias como as de performers trans de Os Satyros”, explica o premiado diretor de filmes como Cabra-cega. Na investigação, de muitos segmentos periféricos, desponta o caráter de produções diversificadas, mas atualmente sob ameaça. “O mapeamento veio da pesquisa da Silvana Garcia, enquanto o mergulho estético foi traduzido numa linguagem audiovisual. Convivemos com os coletivos: eles reencenaram trechos de peças, trouxeram registros dos ensaios e houve dinâmica audiovisual. Usamos detalhes, closes e aproximações, além da coleta de depoimentos. Demos espaço para as forças conceituais, políticas e ideológicas, além de trazer as propostas estéticas”, conta Toni. Curiosamente, há grupo que, por exemplo, leva as peças para serem encendas até mesmo dentro de ônibus, transformado em palco. Um feito da trupe paulistana Sinhá Zózima.
Coragem ao aprendizado
Semanalmente, os alunos da professora de teatro Anna Salles, 26 anos, estão em frente às aulas (pré-gravadas) e dispostas na plataforma Hotmart, com o curso Acting 101. Os deveres de casa e o contato mais amplo com o trio de professores do curso (formados pela UnB) se dá por telegram. “A proposta é de um ensino bem personalizado, daí chamar acting 101. Na primeira turma, tivemos 13 alunos, com idade a partir dos 9 anos. Estamos trazendo ainda lives, com alunos, pelo Zoom. Além disso, a mesma plataforma vai viabilizar a leitura dramática de textos, feita em conjunto”, conta Anna Salles. Ela sublinha que a pandemia tem trazido “provações para todos que atuam na área de artes”. Com mestrado em cinema pela New York Cinema Academy e formada em artes cênicas pela UnB, Anna voltou para o Brasil em 2019, e não demorou a ter saudades das aulas ministradas para os alunos da escola bilíngue Maple Bear. A passagem pelo exterior trouxe um dos diferenciais para o curso de com aulas novas a partir de 17 de agosto (R$ 350): aulas bônus com Isabella Hofmann (The Flash), há mais de 30 anos presente no circuito de Los Angeles, e ainda com a ativista do Black Lives Matter Amber Re’sha, versada em história negra no cinema (sediada em Atlanta, “berço do cinema negro”, como ressalta Anna). Os professores regulares Lola Portela (Rio de Janeiro) e Arthur Romão (de Portugal) completam o corpo docente.
Documentário cênico
Com base no experimental, o teatro do dramaturgo Felipe Vidal vem encorajado pela potência do álbum Dois, da Legião Urbana. Concebido em seis episódios, o documentário cênico Dois (Mundos) traz elenco empenhado em trama que lança nossos impasses de 2020 para o ano 2054, numa proposta de cápsula do tempo. Com mais de três décadas de deslocamento, percebemos os reflexos da covid-19. “O interessante do teatro é abrigar várias artes no que chamamos de caixa-preta: o palco em que tudo pode acontecer. O teatro abraçou a videoarte, a dança, a música e até as interações com o cinema. Como linguagem, vivemos momento histórico reverso, já que o retângulo dos computadores tomaram o lugar da caixa-preta”, observa Felipe Vidal que, com 25 montagens de peças, tem cinco recentes passagens por Brasília, na maior regularidade da carreira. Dois (mundos) lança o desafio de diálogo com canções da Legião de impacto geracional aliado às experiências e histórias pessoais dos oito integrantes do elenco. “Nas ferramentas de ator, buscamos superar a perda da convivência pessoal com o público; mas, em compensação, chegamos não só a diferentes cidades, mas a países diversos também”, diz Felipe Vidal. As cartas para o futuro do grupo, propostas no espetáculo, são balizadas pelo lado A do disco Dois, com projeto de, em 2021, a partir da reabertura das salas de espetáculo, haver complementariedade dos temas a serem explorados nos palcos. Até 10 de outubro de 2020, em 25 minutos (via Zoom e aquisição de ingressos no Sympla), a contestação crítica presente nas letras de Plantas embaixo do aquário e Índios flertará com o potencial afetivo de músicas como Quase sem querer e Eduardo e Mônica, neste inovador rearranjo dramatúrgico proposto por Felipe Vidal.
Para crianças atentas
Desde 2015, num processo colaborativo de criação, a atriz, produtora e dramaturga Claísa Tibúrcio concebeu o espetáculo Sementes, renovando ideias como as de que a destruição da natureza implica na autodestruição humana e ainda metáforas associada à integração ecológica. As respostas de público sempre foram surpreendentes, independente dos formatos, da ocupação de diferentes espaços e mesmo diante de público de outros países. Em suma, como explica, Sementes traz acesso a mil portas e janelas de interpretações. O espetáculo será mostrado, em setembro, pelo projeto Drive-in CCBB — Palco Novo. “Será minha primeira vez com o espetáculo em tempos de pandemia: não sei como será, pela falta de familiaridade com a situação”, comenta a atriz que toca acordeon e canta em cena. Por se tratar de um espetáculo solo, ela conta que as adaptações da obra foram poucas. Para assegurar a sincronia, e garantir precisão técnica não cantará junto com eventuais fundos de músicas gravadas, antes aproveitados. Ajustes na amplificação do acordeon foram demandados, uma vez que telões retransmitirão a ação do palco. Com uso de objetos pequenos, em feituras de mágicas em cena, a atriz acredita que as filmagens se encarregarão de dar visibilidade aos truques dispostos em cena. “Nossa aposta segue sendo a da linguagem teatral. Não existe fórmula pronta para encarar a situação da covid-19: tudo ainda é muita novidade”, comenta. Antes, exibido até em parques (com suporte de programa de educação ambiental, in loco), Sementes aponta os cuidados do planeta e das plantas e estimulou ruidosos debates em salas de aula junto à criançada. Agora, será alvo do crivo crítico das crianças de 2020. “As crianças são muito sinceras — se não rolar, puxam uma conversa ou mesmo pegam o celular do pai e da mãe”, avalia a atriz que aposta no retrato poético de revelar a potência das sementes “como geradoras de paixões e de projetos”.
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