Legislação

Artistas, curadores e críticos reagem à aprovação de projeto que censura exposições

Projeto de lei aprovado em primeiro turno na CLDF proíbe manifestações artísticas e culturais com "teor pornográfico" ou vilipêndio a símbolos religiosos em espaços públicos do DF

Lucas Batista*
Nahima Maciel
Mariana Machado
postado em 19/08/2020 12:51 / atualizado em 19/08/2020 14:29
Para seguir para sanção do governador, a proposta precisa ser apreciada em segundo turno -  (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Para seguir para sanção do governador, a proposta precisa ser apreciada em segundo turno - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Logo que foi anunciada a aprovação, em primeiro turno e com votação apertada, do projeto de lei nº 1.958/18 pelo plenário da Câmara Legislativa do DF, artistas, curadores e pesquisadores se mobilizaram de maneira contrária à proposta. O texto, de autoria do presidente da Casa, Rafael Prudente (MBD), proíbe manifestações artísticas e culturais com "teor pornográfico" ou vilipêndio a símbolos religiosos em espaços públicos do DF. Para seguir para sanção do governador, a proposta precisa ser apreciada em segundo turno, o que pode ocorrer ainda nesta quarta-feira (19/8).

Para a artista plástica Carmen San Thiago, a nudez em obras de arte também não representa “perversidade”, mas a exaltação da perfeição do corpo humano. “O corpo deveria ser algo contemplado e ensinado, desde que nascemos, a ser respeitado e cuidado. Nosso corpo é divino, por isso tão explorado pelos artistas, pela perfeição de uma máquina, que contém formas funcionais e ainda temos a capacidade de amar e de gerar outro ser. Não sei onde foi que as pessoas pararam de caminhar nessa nossa estrada evolutiva e se esconderam atrás de crenças que limitam. Levo minha filha a centros culturais desde sempre, para ela é normal ver pinturas com nudez, e mesmo assim, ela está compreendendo que precisa proteger suas partes íntimas. Por aqui, existe muito diálogo para que ela se fortaleça para essa grande maldade que as pessoas insistem em reforçar de que ‘toda nudez será castigada”, comentou.

Contrário à Constituição

O ator e ex-secretário de Cultura do Distrito Federal Guilherme Reis defendeu que o texto é “inconstitucional”. “A arte é questionadora e pode incomodar. Isso marca a história das sociedades há milênios. A Constituição garante, no rol dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º), os direitos culturais, o livre exercício dos cultos religiosos, à livre expressão da atividade intelectual, artística e científica. Deve ser respeitado o direito de qualquer brasileiro de opinar, gostar ou criticar as criações artísticas. Mas deve ser garantido o direito dos artistas de criar livremente. Se as reações implicam censura ou criminalização, são feridos os direitos culturais garantidos por tratados internacionais e pela Constituição. Portanto, o que foi aprovado na CLDF é inconstitucional e antidemocrático”, afirmou.

O artista acredita que o projeto não prosperará. “Tenho certeza que vai ser derrubado porque é inconstitucional, mas para que passar vergonha? Brasília perderia muito se passar a valer uma lei absurda como essa. Todos perdem com isso, porque são feridos direitos humanos, direitos garantidos em legislação internacional, de 1945, com a criação da Unesco, para cá”, ressaltou.

Para Guilherme, a principal preocupação da Câmara no momento deveria ser a pandemia do novo coronavírus. “Ao invés de se preocuparem com a pandemia, com a mortandade que tem acontecido em Ceilândia, eles estão se preocupando com a moral alheia. Desde as cavernas, a arte expressa a sociedade, o homem, e o corpo humano. Perdemos muito com isso, não podemos permitir que isso aconteça porque é triste. Se minha avó pôde entrar no museu e viu Michelangelo, por que uma criança hoje não poderia?”, questionou.

O que fazer com a História?

“Uma censura generalizada”, definiu o artista plástico Ralph Gehre - indicado ao Pipa, o principal prêmio de arte contemporânea do país - sobre a votação da CLDF. “Vai ter que mexer nos conteúdos todos de cinema, de televisão, de teatro, de publicações, de livros. O que fazer com a História? Onde fica a História? Haverá borracha suficiente pra isso tudo? É uma queima geral da história, colocar na fogueira tudo que já foi feito. São muitas coisas ali”, disse.

Na avaliação de Gehre, que atuou como curador do Museu de Arte de Brasília (MAB), há um certo grau de generalidade e subjetividade no texto. “Não é uma designação que se explicite suficiente, de forma que passará a justificar uma ação intempestiva de algumas pessoas que, em determinado momento, poderão alçar aquela lei para impedir o acesso ou a visitação a algum acervo, ou a frequência a uma museu ou espetáculo em nome da legislação. E censura prévia de uma legislação como essa dá munição a um gesto disseminado, não é objetiva, não se justifica, cria uma circunstância que pode justificar um gesto intempestivo. Posso agora obrigar a fechar a galeria, porque exibiu um quadro, processar o jornal porque publicou uma foto e depois ver no que dá. Não é da competência de um Estado de direito legislar sobre o que é assunto na expressão artística, sobre o acesso que essa expressão pode ter”, destacou.

O fazer artístico

O professor de História da Arte Carlos Silva pontua que arte e liberdade são estritamente ligados. “É preciso reconfirmar que a arte é um campo experimental de liberdade, é a parcela da prática humana que eleva o nível de percepção a níveis não imagináveis. A arte é uma parcela do pensamento e do trabalho humano que diz respeito a uma transformação íntima e positiva do mundo. A arte questiona os estabelecimentos hipócritas da sociedade e que tem por missão: expressar. E parabéns aos artistas que expressam”.

Carlos ressaltou que a celebração da nudez na arte não é algo recente, é uma marca da produção cultural há vários anos. “O nu e as questões celebrativas da nudez e erotismo são marcas da produção cultural humana desde 20 mil anos atrás. A humanidade, seja ela de qual categoria for, ela se especializou, tecnicamente de maneira muito precisa, na representação do nu humano. Então, essa representação é uma marca identitária da produção cultural humana. Os deputados não sabem que isso faz parte da cultura humana?”, questionou.

Para Carlos, há uma série de questionamentos que devem ser levados em conta em um assunto polêmico como o da censura. “O que estamos vendo é um projeto de poder, que vem se manifestando não é de pouco tempo. A primeira coisa a ser levantada é a legalidade da aprovação desse projeto. Se a Constituição autoriza e outorga o direito à liberdade de expressão do sujeito, por que deputados distritais resolvem, então, construir um texto contra a Constituição? Em um segundo momento, é preciso questionar o estatuto conceitual do que está sendo colocado em destaque. O que é nudez, pornografia e erotismo? Qual a distinção conceitual que esses representantes públicos possuem diante da linguagem artística? Com quais especialistas da linguagem artística eles conversaram? Qual a base teórica e crítica que os deputados se fundamentaram para construir uma proposta como essa? As pessoas foram ouvidas ou é mais um projeto autoritário?”, concluiu.

Essência modernista da capital

Ao Correio, o secretário de Cultura e Economia Criativa do DF, Bartolomeu Rodrigues, afirmou ser absolutamente contrário ao PL e espera que a ideia não prospere no segundo turno. "O projeto fere a memória dos fundadores de Brasília. Uma cidade que, por si só, já é uma obra de arte. O ápice do modernismo no país. Em uma leitura rápida do projeto, acredito que seja inconstitucional. O Supremo Tribunal Federal (STF), por diversas ocasiões, já reiterou a posição de que não há nenhum tipo de censura no Brasil. E com relação à questão específica de nudez, o projeto demonstra uma falta de sensibilidade ao que significa arte. A finalidade da obra de arte, sem querer ser professoral, mas a finalidade é justamente não ter finalidade. É provocar emoções e ela atravessa o tempo. A arte é o único espaço do conhecimento humano em que a liberdade precisa ser completa. A liberdade não tem tranca", pontuou o gestor.

O curador e crítico de arte Marcus Lontra também lamentou que a essência da capital do país não seja compreendida por aqueles que foram eleitos para defendê-la. "É uma tristeza e fruto do obscurantismo e das agressões que a atividade artística vem sofrendo nos últimos anos. Em qualquer lugar isso seria um absurdo, mas em Brasília é mais ainda. Vai contra uma geração de artistas, de urbanistas, de arquitetos, contra uma contribuição estética. O que vamos fazer com as mulheres nuas de Ceschiatti?", questionou o curador. Nas palavras de Lontra, Brasília é uma cidade da visualidade e da sensualidade. "A arquitetura do Niemeyer é uma arquitetura sensual. Ele mesmo dizia que projetava pensando nas curvas das mulheres. Essa decisão é de se repelir e lamentar"

Além disso, Lontra citou obras do barroco e nomes importantes da arte brasileira, como Rubem Valentim, que relacionam arte e religião. "A arte surge como manifestação da religião. Arte, religião e ciência são tripés do conhecimento humano. Isso é resultado de relações do moralismo, que não enxergam a questão religiosa de maneira mais ampla, do rspeito ao outro".

Não é a primeira vez

O professor Carlos Silva relembrou que, em 2018, ocorreu um caso de suposta censura na cidade. Na época, o Fórum de Cultura do DF precisou divulgar uma nota técnica de repúdio à decisão. “Em gestões anteriores, nós também tivemos problemas com relação aos posicionamentos da Câmara Distrital em relação à liberdade de expressão. O grupo O Hierofante realizava uma peça teatral pedagógica (Auto da camisinha) para apresentações em escolas da rede pública, que ensinava práticas contraceptivas para sexo seguro. Ainda era o governo do Rollemberg, e a Câmara Legislativa achou a peça pornográfica e tentou censurar a peça. É algo que está pela Câmara há um tempo por conta de certas pessoas que acabam se reelegendo”, alegou Carlos.


*Estagiário sob a supervisão de Roberta Pinheiro

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