Censura velada ou escancarada?

O controverso projeto de lei que proíbe manifestações artísticas e culturais com "teor pornográfico" ou vilipêndio a símbolos religiosos em espaços públicos do DF levanta o debate sobre a interferência do poder público nas manifestações artísticas

Lucas Batista » Roberta Pinheiro
postado em 20/08/2020 23:14
 (crédito: Mauro Pimentel/AFP)
(crédito: Mauro Pimentel/AFP)

O debate em torno de manifestações artísticas e as respectivas poéticas não é recente. A votação do projeto de lei nº 1.958/18, que proíbe manifestações artísticas e culturais com “teor pornográfico” ou vilipêndio a símbolos religiosos em espaços públicos do DF, pelo plenário da Câmara Legislativa evocou episódios anteriores que deixaram artistas da cidade apreensivos.
Em 2017, dois episódios ganharam destaque na capital do país. O primeiro foi a performance de Maikon Kempinski, que foi detido pela Polícia Militar, durante uma apresentação na praça do Museu Nacional da República. Na mesma instituição, a exposição Não matarás recebeu a visita do deputado e pastor Marco Feliciano (PSC-SP), que foi checar a mostra após uma “denúncia” de que haveria obras “pornográficas”. Vale lembrar que no mesmo ano, a exposição Queermuseu foi fechada, em Porto Alegre, após um protesto do Movimento Brasil Livre (MBL) sob a acusação de blasfêmia a símbolos religiosos e de, em alguns casos, pedofilia e zoofilia. Em São Paulo, o coreógrafo carioca Wagner Schwartz e a performance La Bête foram associados à pedofilia.
Para o artista plástico e curador Wagner Barja, que atuou como diretor da instituição por mais de dez anos e acompanhou de perto os episódios de 2017, com o passar dos anos, o que se vê é uma piora do olhar e da resistência para com as artes. “Antes havia uma resistência natural a isso e as pessoas não estavam tão acirradas por esse processo obscurantista de calar as pessoas. Quando você proíbe dessa forma (como propõe o PL) é uma espécie de “cala a boca”. É um aborto da exposição do corpo de forma poética”, comenta. Aliado ao desmonte cultural que o país enfrenta, a proposta da CLDF é, na avaliação de Barja, “o reflexo do retrocesso que a gente está vivendo com relação à democracia.”
“Como gestor público, não só no Museu Nacional que atravessei problemas com relação à nudez”, relembra o artista e curador. Barja, assim como outros artistas, críticos e curadores, destacam que desde os primórdios da história da arte existe a representação do nu e que “a nudez atravessa o corpo da arte”. “Não acredito na agressividade que as pessoas veem no nu artístico. Na Belas Artes, no modelo francês do século 19 e chegou ao século 20, existe o estudo do nu, as pinturas do Renascimento, A lição de anatomia, de Rembrandt, são clássicos da nudez que de forma alguma são agressivos. É um preconceito”, avalia. “E tudo isso se desdobra nos museus, nos espaços culturais, porque a arte evolui na medida que ela vai se adaptando aos tempos, quebrando paradigmas”, acrescenta.
Doutor em Arte Contemporânea e professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB), o artista plástico Christus Nóbrega ressalta o retrocesso que uma aprovação do PL significaria. “A escultura mais antiga da representação do corpo humano é datada de 35 mil anos. A Vênus de Hohle Fels, encontrada em 2008 na Alemanha, é uma figura feminina nua, esculpida com seus órgãos genitais extremamente exagerados e à mostra. Acredita-se que socialmente ela representasse a esperança pela sobrevivência e longevidade — eis o que um corpo nu pode representar. O projeto proposto na Câmara Legislativa é tão absurdo que tenta retroceder a função social da arte muito mais de 35 mil anos. Não estamos falando de um retrocesso de um par de décadas, o que já seria absurdo por si. Estamos falando de um retrocesso de mais de 35 mil anos. Um retrocesso anterior ao período Paleolítico Inferior - momento mais antigo da Pré-História da humanidade. Pela sua ideologia obscura e pré-primitiva, o projeto deseja retirar a humanidade da própria humanidade.”

Censura

No artigo Censura e pós-censura: uma síntese sobre as formas clássicas e atuais de controle da produção artística nacional, publicado em 2018 na publicação Políticas Culturais em Revista, a professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão (OBCOM) da Usp, Maria Cristina Castilho Costa, e o professor e vice-coordenador do OBCOM, Walter de Sousa Junior, refletem sobre os mecanismos censórios, presentes na formação histórica, política e cultural do país, e a produção artística. Por ser uma sociedade globalizada, caracterizada pelo pluralismo e pela diversidade, “não se encontram mais, como outrora, ideologias efetivamente hegemônicas e que se sobreponham às diferenças, às fragmentações, às divergências, aos particularismos. Dessa forma, combater certas tendências ideológicas torna-se cada vez mais difícil, pois não se encontra apoio unânime aos atos censórios. Assim, eles imprimem nas interdições um caráter particular, pontual, parcial”.
Para os professores, estudar a censura nos dias de hoje requer um aprofundamento em cada processo, em cada caso, e trabalho de comunicação em rede, com a internet. “Por outro lado, a censura não tem mais uma logomarca ou um processo burocrático como no passado; hoje ela se manifesta por meio de ações judiciais, de pressão econômica, de assédio moral, de atitudes políticas de iniciativa do Estado, mas disfarçada de proteção, política de comunicação, defesa da ordem social”.

Interpretação

Barja avalia ainda que o texto do PL não é claro e a relação de igualdade entre pornografia e arte é equivocada. “Dá margem para interpretações equivocadas”, complementa. “Assim, existe uma tendência a censurar a liberdade de expressão, entra em um campo jurídico. Isso atinge uma produção cultural que vai ficar encolhida e vai trabalhar com a autocensura”. Ao tentar decidir o que a população pode ou não ver, também para Nóbrega, o Estado passa a assumir o papel de censor. “Criticar, discutir, debater os conteúdos das obras de arte faz parte de um processo democrático. Proibi-las não. Além disso, o contato com a arte é também um processo educativo. A educação é um direito básico garantido constitucionalmente. Qual o objetivo de um projeto que tenta privar a sociedade de um direito tão básico?”.
Os dois também chamam a atenção para o placar apertado da votação em primeiro turno da proposição. Entre os 24 deputados distritais, 13 participaram da sessão por videoconferência. Ao todo, foram sete votos favoráveis e seis contrários ao texto apresentado pelo presidente da Casa, Rafael Prudente (MDB). “Minimamente, houve um embate no qual eles não são maioria absoluta”, comenta Barja. “Em uma segunda votação, os parlamentares que não estiveram presentes, bem como aqueles que votaram sim por essa aberração jurídica, poderão honrar o compromisso dessa valiosa Casa com a democracia e o povo brasileiro”, conclui Nóbrega.

Escolha

Parlamentar pelo PRB que votou a favor da proposição, Martins Machado acredita que é uma questão de escolha e não de censura. “É uma forma de evitar que as famílias sejam surpreendidas com um conteúdo que não julgam compatível para seus filhos. É uma forma de preservar para que não haja constrangimento. Mas, por outro lado se os pais acharem que o conteúdo pode ser visto, basta ir a um evento privado, onde deverá constar em local visível um comunicado com o teor da exposição e a faixa etária”, pondera.
Iolando Almeida (PSC) também votou a favor. Na avaliação do deputado, apesar do país ser um país laico, a maioria da população é cristã e “ferir os princípios da igreja, da religião, é agressivo, é triste, e, a partir do momento que fere esse princípio, está ferindo o estado laico e isso é injustificável”. Almeida ressalta não ser contrário à produção cultural, “mas contra a cultura desordenada, com o princípio que fere a família, os cristãos. Com esse princípio que eu votei a favor”.

*Estagiário sob supervisão
de Igor Silveira

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