Crises familiares, desentendimentos no casamento, medo e insegurança diante da covid-19 e as reflexões, às vezes, abstratas que tão bem casam com o nosso atual dia a dia adulterado pela pandemia. Em meio à instabilidade dos tempos, diretores de cinema nacional — entre os quais André Pellenz (Minha mãe é uma peça); Daniel Belmonte; o cultuado Fellipe Barbosa (de Gabriel e a montanha, exibido em Cannes), agora, em experiência coletiva e a iniciante Beatriz Saldanha — começam a gravar filmes, seguindo todos os protocolos de segurança exigidos pela atual circunstância. Confira a seguir as preocupações e as intenções de quem está no set de filmagem, tratando da quarentena e afins.
Família vista por meio de lupa
Na tentativa de se ajustar aos tempos da pandemia, inevitável que o diretor de cinema Daniel Belmonte, em plena atividade profissional, experimente novos movimentos tanto na sensibilidade e quanto na criatividade. “Estamos imersos em um momento muito duro, com certeza o mais difícil que já experienciei. Penso que a obra de arte seja um testemunho afetivo do presente”, observa o diretor que atualmente dedicado à recriação, para as telas, de uma obra teatral de Nelson Rodrigues: Álbum de família.
Escrita em em 1945, a obra levou a equipe a buscar expressão de um ponto de vista que justifique rememorar Nelson Rodrigues, em set carioca. “Utilizamos sua peça para pensar na ideia de família a partir das nossas. São as atrizes e os atores junto das suas famílias construindo o seu álbum”, explica Daniel Belmonte. No elenco, interpretando atores de teatro, Lázaro Ramos, Renata Sorrah e Otávio Muller se relacionam via tecnologia, com uso de Zoom, WhatsApp e telas divididas. Redator de Zorra, Belmonte, no filme, rodado remotamente (sem encontro de equipe) conduz trama repleta de metalinguagem e improvisos, numa trama que incorpora, como personagens, familiares dos próprios atores.
Junto com o balançar do sentido da família tradicional, “patriarcal, na qual tentam encaixotar a gente”, como demarca, Belmonte buscou reajustes na maneira de filmar. “Novos tempos pedem novas formas de realização; sem abandono de conhecimentos adquiridos. Conforme o filme acontecia, descobrimos a necessidade de um set virtual com fotógrafo, figurinista, diretora de arte, produção, técnico de som e muito mais”, conta. Álbum de família impôs a beleza de intensificar novas formas de contato no curso da profissão. “Dirigir é justamente se fazer entender. E, a todo momento, esbarro em questões de não saber me explicar, às vezes até em coisas simples como ‘de qual esquerda você está falando?’, já que, no monitor do computador, as coisas se invertem”, comenta.
Retiro campestre
Filmado em 13 dias em Bocaina de Minas, o mais novo longa de Fellipe Barbosa (Casa Grande) traz o emblema da resistência do cinema e da coletividade criativa, tendo direção ainda compartilhada com as atrizes Malu Galli e Ana Flávia Cavalcanti. “Os tempos estão muito estranhos. Não é nada fácil voltar a filmar. Ansiedade e tristeza estavam presentes no set. Pesava a preocupação não apenas de seguir com os protocolos de saúde, mas ainda com coisas que têm ocorrido no mundo. Isso guiava a atmosfera do set”, conta Alejandro Claveaux, ator do filme e um dos autores do roteiro (assinado até mesmo pelo diretor de arte e responsável pela cenografia do filme Afonso Tostes).
Bocaina, o filme, incorpora a atmosfera pandêmica, mas não trata exatamente de coronavírus. “Trata do retorno ao campo, à natureza, com valores do que seja saudável e da conexão com a natureza. É um filme atemporal, com dimensões que se tocam, tendo como cenário uma casa isolada, e uma equipe reduzida. Artesanal, mas com senso profissional, foi a maneira de filmarmos”, explica Claveaux, que, goiano, viveu muito tempo entre Pirenópolis e Brasília, como entregador de queijos produzidos pelo pai.
O lockdown total foi decretado nas filmagens. “Fizemos uma grande compra de mercado, para não sair mais para nada. Além disso, fomos todos testados para covid”, explica Claveaux. Quase toda a equipe criativa do filme esteve envolvida nas gravações da novela Amor de mãe (que ainda terá 23 capítulos gravados), com conclusão prevista para 2021. O valor à vida foi uma das premissas na feitura da fita, que teve direção de fotografia de Heloísa Passos (de Construindo pontes).
“Com segurança, tivemos equipe muito reduzida, e que rendeu alegria para a gente. Estamos criando conteúdo produto que venha a divertir as pessoas e fazendo com que reflitam. Muitos começaram a perceber a importância que tem a cultura na nossa vida. Em casa, as pessoas consomem música, consomem livros e séries. A cultura faz pensar, muda comportamentos e, na nossa loucura atual, isso ficou muito claro”, completa o ator.
Amanhã tenebroso?
Depois de uma carreira como crítica de cinema, a cearense Beatriz Saldanha se viu ansiosa, na expectativa de aplicar, pela primeira vez, na prática e no set de filmagem, os conhecimentos teóricos de mestra em Comunicação Audiovisual. Administrou o tema dos demônios e das possessões, no curta Jérôme — Um conto de Natal, integrado ao longa-metragem Antologia da pandemia, filmado na decorrência da covid-19, com preponderância de doses de terror. Um set seguro, caseiro, e em meio à pandemia decorreu da escolha do tema do curta: com o dono morto, um gato faminto trata de pactuar (com o oculto) a ração dele de cada dia. Realizado, o filme conquistou vaga em concurso do Festival Fantaspoa (o maior da América Latina, dedicado ao gênero fantástico).
No filme, o protagonismo de Jérôme (gato dela, batizado a partir da série Seinfeld) poderia indicar uma figura empática e capaz de amenizar tensões dos espectadores. Mas, tudo se revela do avesso, na trama. “Vejo a produção do terror aumentado. Acho super válida a proposta: traz minha forma de ver o mundo. Expressar temores como o de perder alguém é modo de expurgar medos. Um estudo acadêmico, aliás, revelou que pessoas consumidoras de terror estão mais aptas a lidar com a pandemia”, explica a diretora Beatriz Saldanha.
Nada genioso, e ao lado de três outros gatos (que atuaram no filme), Jérôme, apegado à dona, facilitou a estreia de Beatriz no set. “Por não ser atriz, não me via atuando; daí veio a ideia e o roteiro do curta. Ações naturais do Jérôme, como a mania de arranhar a lata de comida, na montagem do filme, passaram a demonstrar, na tela, situações que sugerem depressão, ingenuidade e até ocultas más influências”, comenta a diretora.
Entrevista // André Pellenz, diretor de Fluxo
Em que aspecto a nossa realidade atinge o plano do filme Fluxo? Filmar nestes tempos é limitador?
Quando filmamos, os protocolos não previam equipes num set, mesmo que pequenas. Então tivemos que fazer um filme 100% remoto. Ninguém chegou perto de ninguém, exceto o casal protagonista, que morava junto. Ao mesmo tempo em que isso foi uma grande limitação, foi algo que decidi absorver na linguagem do filme.
Depois de esmagadores sucessos de bilheteria, como Minha mãe é uma peça e D.P.A., percebe que haja fórmula infalível para atingir o público? Que perspectivas de lançamento surtem efeito?
Não são tantos sucessos assim, ainda estou começando. Definitivamente não há fórmulas, mas sim uma junção de fatores, até porque estamos sempre lutando para ter espaço nos cinemas — e, sem estar em muitas salas, é impossível fazer sucesso. Quanto a cronograma de lançamento, depende do filme. As férias escolares funcionam muito bem junto ao público mais jovem, enquanto as temporadas com muita chuva ajudam junto ao público mais velho.
As pessoas querem ver a pandemia retratada nas telas?
Em alguma medida, sim. Filmes sobre guerras são vistos até hoje, alguns sobre conflitos recentes. No caso do meu filme, o tema central não é a pandemia, mas talvez as pessoas se identifiquem com o sentimento dos personagens. O que ninguém vai aguentar, é claro, é ver dezenas de filmes sobre o mesmo tema. Mas acho que essa regulagem virá dos próprios artistas — nem todo mundo quer filmar a pandemia, ou algo que se relacione com ela. E isso é ótimo.
Reviver um trauma é entretenimento?
Quando reviver um trauma funciona como entretenimento, mesmo que seja um drama, significa que a arte cinematográfica está ajudando as pessoas a superar esse trauma, a refletir sobre ele. A arte faz a vida suportável, e o cinema é parte importante nisso.
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