Fotografia

Araquém Alcântara completa 50 anos de andanças, clicando o Brasil por infinitos ângulos

Ao completar 50 anos de carreira valorizada pelo mundo, o fotógrafo Araquém Alcântara reafirma a meta de reverter a destruição da Natureza

Ricardo Daehn
postado em 23/08/2020 09:07 / atualizado em 23/08/2020 12:14
 (crédito: Araquem Alcântara/Divulgação)
(crédito: Araquem Alcântara/Divulgação)

Desde os 18 anos de idade, Araquém Alcântara dá vazão à incontida produção fotográfica. À época em que atuava no dia a dia dos jornais, ele costumava virar a cara para as possíveis viagens profissionais destinadas a Nova York; para espanto de muitos, assuntava: “Não tem nada aí, pra ir pro sertão de Gilbués (no Piauí)?”. Se o corpo de trabalho ganhou repercussão internacional ao fotografar o Brasil, Araquém não tem dúvidas que assim seguirá.
Enquanto emplaca imagens viralizadas, no tempo das projeções pelas redes sociais, Araquém, que completa 50 anos de profissão em 2020, se prende a registros do cotidiano nacional, visto em paisagens e festas. “Revelo pequenos tesouros. Muitas fotografias são ou serão testemunhas do que se perdeu. O artista, quando indomável, como sou, tem sede de que suas fotos permaneçam”, explica.
Às vésperas de mais uma viagem para a Amazônia, o fotógrafo vê palpitar as eternas vocações para a poesia e o idealismo. “Tenho 69 anos, mas um corpo de menino”, chega a ser gabar, tamanho o entusiasmo. Viajante e intérprete do Brasil, como se diz, Araquém, nas andanças, observa fenômenos que o atingem em cheio, como no caso das queimadas, e corre para apontar dados: hoje, quase 90% da madeira extraída (na Amazônia) é ilegal, não há regularização fundiária, matas de araucária minguaram a 1% e 93% da Mata Atlântica foi dizimada, enquanto a Amazônia já sangrou em 17% de surrupio.
Mesmo o desequilíbrio entre Terra e homens não tira a expectativa de que a Floresta Amazônica venha a ser salva. “Vejo a possibilidade, a partir da vontade, da indignação e das atitudes, com o engajamento mundial”, resume. Outro fato que antevê está no terreno pessoal, com a previsão, até 2023, da comemoração do cinquentenário, na lida com a “profissão de fé” de fotografar. Em processo, há pendente livro (o 56º da carreira), a ser lançado Feira de Frankfurt (Alemanha).
Passado o lançamento de outro título, centrado no Pantanal, e previsto para novembro, Araquém trabalhará com a equipe Vento Leste Editora para internacionalizar obra sob título a definir: Amazônia: a beleza e a destruição ou Luz e trevas. Outra adaptação será para crianças, em livro em torno da natureza no Brasil.
Tornado best-seller Brasileiros (2020) está quase esgotando. Homenageado na edição especial da revista Du, terá 120 páginas, numa edição histórica, na publicação suíça que reconhece um fotógrafo no mundo, a cada seis meses. Um livro sobre o cinquentenário (com timeline da carreira) e outro, sobre paisagens e fauna brasileiras, ainda acompanharão a epopeia de Araquém editar um guia, marcando tudo o que aprendeu — “na raça, como autodidata” — em tom bem coloquial.

Araquem Alcantara
Araquem Alcantara (foto: Arquivo pessoal)

 

» Entrevista /Araquém Alcântara

Houve alguma meta definitiva na carreira?

Resolvi fazer uma odisseia pessoal, inspirado nas ideias do Ansel Adams que ajudou a criar parques nacionais nos EUA. Eu teria que abarcar todos os ecossistemas do Brasil. Foram 20 anos de viagens que me tornaram um símbolo de fotografias mais vendidas em todos os tempos. Isso foi com o livro Terra Brasil, agora na 13ª edição. Sou o primeiro fotógrafo a registrar imagens de todos os parques nacionais do Brasil. Fotografei o Parque Nacional de Brasília, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (...); deixei para o final a Amazônia. Tive que morar lá um tempo, já que eram várias expedições. Pela frente, o Parque Nacional da Serra do Divisor (no Acre), Parque Nacional do Pico da Neblina, Parque Nacional do Monte Roraima... Me preocupei em revelar a riqueza deste país, tanto do ponto de vista geográfico quanto humano. Foi quando passei a entender o Brasil, realmente. Empreendo uma saga homérica, mesmo. Ando, há 50 anos, por este país. Citando o Guimarães (Rosa): me interessa o real, e que não está na chegada, está na travessia. Vi uma multiculturalidade incrível: o Brasil tem uma força extraordinária para superar até... Jair Bolsonaro (risos).

Dá para perceber a devastação, ano a ano, para alguém que sistematicamente trava contato com rincões do Brasil?

Sem dúvida. Quando você observa, de tanto andar pelo país, comecei a entender que fiz escolha correta: para captar o caráter do povo, tinha que andar ao lado dele. O único jeito que havia era viajando; andando, andando, sem fôlego. É uma dedicação extremada. Caminho quilômetros e quilômetros, e não vejo prosperidade. Ainda não entendemos que temos uma grande riqueza nas mãos, com a maior biodiversidade do planeta, mas as florestas têm sido dilapidadas sem gerar benefícios sociais e econômicos.

Como vê Sebastião Salgado e o que pensa de comparativos?

O Sebastião fotografa o mundo. Ele é, sem dúvida nenhuma, um dos maiores fotógrafos do mundo. A gente se respeita muito, num país em que é um pecado fazer sucesso. Eu me dediquei a ser o fotógrafo do Brasil. Por isso, mergulho neste povo: sou um colecionador de mundos, porque o Brasil é um mundo. A minha matriz total, meu modelo de universo é o Brasil. E olha que não vai dar (para cobrir) tudo, nessa vida, vai ter que ter outras encarnações (risos).

Araquém Alcântara, 50 anos de carreira
Araquém Alcântara, 50 anos de carreira (foto: Araquém Alcântara/ Divulgação)

Como tem lidado com a pandemia?

A pandemia me fez mergulhar, revisitar toda a minha obra que, em preto e branco, tem mais de 500 mil imagens, em termos de produção analógica (com uso de negativos). Depois, entrei em contato com a produção dos últimos 20 anos, e cheguei à conclusão de que vou precisar de, ao menos, mais um ano. Como sou uma usina de produção, interessado em contribuir para memória e identidade brasileira visual, usei muitas mídias sociais. Sou seguido por umas 300 mil pessoas. Isso alimentada o sonho dos 50 anos em curso: todo um caminho segue para o aspecto internacional, no âmbito das exposições e dos livros. Penso ainda num guia, escrito, filosoficamente, mas com tom coloquial, e que troque em miúdos os 50 anos de vivências. Quero alinhar a vontade poética e política do fazer fotográfico documental no país.

De onde vem esta vocação e o comprometimento?

Quando comecei, minha primeira foto foi de uma prostituta levantando a saia, no cais de Santos (SP). Santos me deu régua e compasso. Em 1983, fiz minha primeira exposição na França. Em Paris, mostrei o cais, as putas, o cotidiano de Santos, Cubatão, aquela loucura da Baixada Santista nos anos de 1980. Escrevia, no jornal, sobre a cidade de Santos, sobre o Pelé, sobre as enchentes. E brotava uma escrita ensaísta. Fotografei todo cotidiano e história da minha região. Naturalmente, fui entrando na Mata Atlântica; aos poucos percebi que meu trabalho ganhava ideologia. Daí, noto que persistem dois elementos da minha paisagem poética e a paisagem política que se unem. Sou um artista de combate: um fotógrafo que acredita na capacidade transformadora da sua linguagem.

Araquém Alcântara: 50 anos de atividades
Araquém Alcântara: 50 anos de atividades (foto: Araquém Alcântara/ Divulgação)

 

Que registro tem de sua obra? Quais são as bases de uma boa foto?

Vejo meu trabalho como crônica da beleza e da destruição. Está tão evidente, penso. É um canto apaixonado pelo país, mas mostro os horrores que estão sendo cometidos. Entra governo e sai governo, e o país está num processo de desertificação. Está tão violento, que é preciso dar um basta: fazer isso parar. Quanto às bases da fotografia, vejo três. No topo está a criatividade. Depois, tecnologia e técnica. É preciso sobrepor a inspiração à informação. Inspiração tem que prevalecer é uma linguagem plástica: é arte. Tem a imagem que chama olho, e digo: “isso é preto e branco!” A outra imagem só flui e se revela em cores. Sou apaixonado pelo preto e branco. O fotógrafo é o protagonista para perceber o caminho a ser tomado. Há duas partes de um todo (colorido e preto e branco), e o fotógrafo é quem escolhe.

Que familiaridade tem com as tribos da Amazônia representadas no seu trabalho, e como vê a atual situação delas?

Olha, posso estar em qualquer tribo, com apoio ou não da Funai. Quanto à problemática atual: para se ter ideia, os kanamaris foram infectados pelos próprios brancos, agentes da saúde. Como o governo pode ignorar? Já tinha que ter montado um hospital base no Xingu. Há um desmonte total da questão socioambiental no Brasil. Não temos nem ministro da Saúde! O governo precisa assumir a responsabilidade. São 20 milhões de amazônidas. A preservação da Amazônia passa por um modelo social e econômico para eles.

 

Que imagem temos passado para o mundo?

Temos que entender que a sustentabilidade já entrou sobretudo na economia. Há uma pressão que pende para a vertente da economia ecológica. Não é à toa que o discurso do Hamilton Mourão (à frente do Conselho Nacional da Amazônia Legal) fica preso ao seguinte: nós vamos cumprir agendas (propostas). Sem a floresta e com o aquecimento, o cenário fica insustentável. A Amazônia entra na savanização, com 20%. São irreversíveis os danos à floresta, havendo a parada das chuvas, há afetação do agronegócio. É preciso parar o desmatamento, imediatamente. O genocídio intencional que está em curso no Brasil precisa ser rompido e com a pressão internacional mesmo. Vivemos a era da boçalidade. Há intenção é jogada com a mentira. Você pega um avião em Boa Vista, diz o presidente da República, vai até Manaus e não vê queimada. Claro! Lá em cima ainda está verde, virgem; mas se atravessar, em direção ao Sul, no rio Amazonas, no Solimões, você vê uma destruição que é um crime de lesa humanidade. Já devíamos ter assumido a recuperação destas florestas há mais de duas décadas.

Araquém Alcântara, 50 anos de carreira
Araquém Alcântara, 50 anos de carreira (foto: Araquém Alcântara/ Divulgação)

Que desafios estão evidentes?

Agora é que o mundo acordou, e meu trabalho começa agora, aos 51 anos. Quero unir minha voz: a floresta só será salva com o engajamento de toda a humanidade. Não se completa. A destruição do maior patrimônio biológico desta grande reserva ambiental fundamental para o futuro saudável escancara o nosso descaso, a conivência com um crime inominável. Sem floresta, não há futuro. É isso que me move, porque, entra governo e sai governo, e eu vejo um holocausto.

Araquém Alcântara, 50 anos
Araquém Alcântara, 50 anos (foto: Araquém Alcântara/ Divulgação)

Como vê a atuação militar nas fronteiras brasileiras?

Existe um enorme valor nela. Se não fosse a presença do Exército e da Aeronáutica nas fronteiras, que atraem e ajudam todas as comunidades indígenas próximas(...)! Temos uma Comissão de Aeroportos da Região Amazônica (Comara) que não é falada, nem divulgada. Com a Comara já construíram 150 aeroportos, na raça. Mesmo assim, acho que devemos contar com o apoio internacional — independente da cobiça existente. Temos condições de se tornar a grande potência verde. Temos que entender: abrir para a pesquisa. A Amazônia precisa de cientistas, é preciso valorizar estudar o laboratório vivo. Amazônia é uma grande biblioteca ainda não estudada. Lá podem existir centenas de produtos que podem revolucionar a saúde na Terra. Não dá pra dilapidar esta biblioteca! O que me transtorna e ver que o mundo todo acorda, e o país está na contramão, andando pra trás.

Araquém Alcântara/ Divulgação
Araquém Alcântara/ Divulgação (foto: Araquém Alcântara, 50 anos de carreira)

 

 

 

 

 

 

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