O mestre-sala da minha saudade, quarto álbum autoral do músico e ator Rodrigo Vellozo, se inspira na figura que representa o integrante da escola de samba que protege a bandeira da agremiação. Apaixonado por símbolos, arquétipos e mitologia, Rodrigo viu na representação carnavalesca um elemento de coesão do disco. “É uma figura mítica. O protetor da bandeira da escola. Ele carrega uma dignidade. Então, quando você fala da saudade, é entender: saudade é pra vida inteira. Como carregar essa saudade com dignidade?", se questionou.
Um samba desconstruído e sem percussão costura as 12 faixas do disco distribuído digitalmente pela Warner e, em versão física, pelo selo Circus. A obra, com características conceituais, homenageia o irmão caçula de Rodrigo, que morreu em setembro do ano passado, fala da falta que ele faz para o autor e enaltece relações familiares.
“Ele estava morando comigo havia um ano”, conta Rodrigo, em entrevista ao Correio. Ele e o irmão, André, moravam com o pai, o compositor Benito de Paula, em São Paulo. “A gente sempre foi muito próximo, e era muito parecido em muitas coisas. Ele morreu de repente.” Na época da morte, Rodrigo estava cumprindo temporada, de terça a domingo, com o espetáculo Casa submersa, em SP. “Eu estava fazendo uma peça onde eu cantava, e que lidava com temas trágicos. Tinha coisas bastante parecidas, em algumas instâncias, com o que eu passei.”
Era um sábado quando ele soube da morte do irmão, e teve que cancelar a participação naquela noite. Na terça-feira seguinte, estava de volta ao trabalho. "Sabia que minha substituição, tecnicamente, era um pouco complicada. Eu tinha uma cena bem longa, com texto difícil, tinha ensaiado meses com a atriz (Virgínia Buckowski). No segundo e no terceiro ato, eu cantava praticamente todas as músicas da peça, e tinha solo, e o segundo ato era todo entremeado por músicas, quase como um concerto”, explica o músico, que, teve de ser substituído por duas pessoas, um ator e um músico.
Não foi fácil, como se pode supor. “Acabou que o luto virou trabalho e ficou tudo muito confuso”, narra. “Sabia que o que estava sendo dito ali era muito forte e precisava ser dito”, declara Rodrigo, que recebeu total liberdade dos colegas para abandonar a peça. A solidariedade prestada, contudo, foi recebida em dobro. A montagem ganhou uma segunda temporada. No fim de dezembro, ao perceber que a temporada estava prestes a acabar, Rodrigo se viu perdido, sem saber o que fazer. Na saída do teatro, alguém lhe perguntou o que ele faria quando o espetáculo acabasse, e ele respondeu: “Vou fazer um disco”. Mas, até então, não havia um álbum planejado.
Parceria
Para dar forma à profecia, Rodrigo convocou o músico, compositor e produtor Romulo Froés, com quem havia trabalhado em outro projeto. Começou ali não só uma profunda amizade, como uma parceria prolífica. Além de produzir o disco, Romulo compôs a maior parte das letras e ajudou a mudar os rumos do projeto. “Tenho todos os discos do Romulo, já era muito fã, e percebi que rolava uma afinidade, não só de admiração, mas também pessoal”, Rodrigo contextualiza.
A ideia, a princípio, era fazer um disco feliz, e que não fosse sobre o irmão de Rodrigo. “Na minha cabeça, naquele momento, seria um disco muito alegre, solar, porque eu estava vivendo uma tragédia”, explica o músico. Ocorre que, devido ao momento que estava passando, Rodrigo conseguia compor as melodias, mas “perdeu a capacidade de escrita”. Começou, então, a mandar as melodias para Romulo, que, em algum tempo, lhe enviou uma remessa de músicas que pareciam tirar as palavras da boca de Rodrigo. “Quando ele me mandou a primeira leva de cinco músicas, percebi que a gente estava falando do meu irmão. Claro, porque algumas melodias eu estava fazendo naquele momento, estava vivendo isso”, lembra.
As composições começaram em meados de dezembro, e, em janeiro, o repertório estava ensaiado. Romulo convocou os músicos Allen Alencar, Marcelo Cabral e Rodrigo Campos para formar a banda de base, complementada por eles mesmos. Quando sugeriu fazer os arranjos sem a presença da percussão, Rodrigo ficou com um pé atrás. ”Fizemos um disco trágico, no sentido mitológico e denso. Quando chamei o Romulo, sabia que não ia ser um disco de samba tradicional. Se fosse, eu ia no Rio. Sempre gostei da maneira como o samba é desconstruído por ele, tanto do ponto de vista de letra e composição, como do ponto de vista de arranjo”, explica Rodrigo. Nos primeiros ensaios, a resistência foi quebrada. O disco foi lançado em agosto.
Participação
A participação do pai, Benito de Paula, no disco, foi óbvia e natural. O pai, assim como ele, também estava imerso no luto e eles mal conversavam sobre a situação. “Uma coisa que me marcou muito é que meu pai queria mudar a casa. Começou a pintar a parede, o quarto do meu irmão. Um dia voltei do estúdio, quando cheguei, o quarto estava totalmente diferente”, narra.
A música que ele canta, Lágrimas no meu sorriso, é uma espécie de bate-papo com André, coisa que Rodrigo admite que, às vezes, faz mesmo após a morte do irmão. “Quando o Romulo me mandou a letra, foi uma das músicas que mais me emocionou, e me fala mais diretamente. Parecia que aqueles versos tinham sido feitos para ele cantar, para ele dizer essas palavras. Meu pai tem que participar dessa música falando isso”, pensou. “E como funcionou! Casou muito bem a voz do meu pai. Tem a ver com todo o histórico dele, que tem uma coisa de vanguarda no trabalho, e propôs modificações até polêmicas na forma de tocar o samba". Na prática, a música ajudou a verbalizarem a dor. “Não tive a pretensão de ajudar meu pai com esse trabalho, jamais teria, mas aconteceu naturalmente".
Outra música do disco, Pássaro Negro, foi composta por Rodrigo muitos anos antes, quando o governo desapropriou a primeira casa que o pai comprou, no Morumbi, onde morou por muitos anos. Benito ficou arrasado, e o filho compôs a faixa usando o pássaro negro como metáfora dessa tristeza. Durante o processo de composição do disco, apresentou a música a Romulo, que mudou a melodia e enxugou a letra, deixando-a ainda mais dura. Recontextualizada, a música fala, ao mesmo tempo, do pai, do filho, e do irmão caçula.
Outros convidados
Já a aparição de Xande de Pilares no disco, na música O samba que esqueceu, veio para trazer um pouco de leveza à obra. Amigo da família e assíduo intérprete das composições de Benito, Xande se tornou conhecido de Rodrigo quando ele, ainda garoto, foi a um programa de televisão como o pai. No mesmo dia, também conheceu Cauby Peixoto.
"A letra que o Rodrigo fez é uma das de mais esperança do disco. Ela é triste, mas tem uma coisa da função da arte, da função do samba de fazer a gente conseguir levar. Acho que o Xande tem uma coisa na própria história da arte dele. Você vê o tanto que as coisas que ele faz ajudam as pessoas. De certa forma, se eu estou sendo o mestre-sala da saudade, ele está sendo o da alegria”, Rodrigo enaltece. “Eu não poderia colocar isso naquele momento, não poderia sair de mim. E o Xande é isso.”
O disco encerra com a música Poesia sem salvação, que é um poema de Marcelino Freire, poeta que Rodrigo admira desde os tempos de teatro na escola. “Fez parte da nossa formação como atores”, reverencia. Na época, o grupo apresentou uma peça que misturava textos de Marcelino e Plínio Marcos, e o próprio Marcelino estava na plateia. Ele adorou, e os dois se tornaram amigos. O poema que encerra o disco, a princípio, seria musicado por Rodrigo, mas, à medida que ia lendo o poema, Romulo foi criando uma melodia e a faixa acabou se tornando uma parceria entre o poeta e o produtor.
*Estagiário sob a supervisão de Adriana Izel
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.