Ator, há 16 anos, o brasiliense João Campos, mesmo com as exigências do trânsito por várias regiões do país — obviamente, travado pelos riscos da pandemia — não abre mão da morada na capital. “Nunca saí, oficialmente. Nem quando acabou a novela da Globo (A lei do amor, em 2017), depois de morar um ano no Rio de Janeiro, tive dúvidas: queria voltar para Brasília. Minha casa é aqui: moro numa roça maravilhosa, uma chacrinha, entre os córregos do Urubu e Jerivá. Meus amigos e minha companheira estão aqui; minha família, perto. Em Brasília, consigo ficar próximo da terra, algo muito importante para mim”, explica o ator que vive momento de destaque, colhendo dois frutos: a exibição do longa Depois de ser cinza, em festival internacional, e a estreia da série A bênção (hoje, às 21h, no Canal Brasil).
Dono de olhar politizado, o ator admite o pendor por projetos pertinentes, quando pesam discurso de representação e a construção de um espelho social e cultural. Nisso, a série A bênção traz potencial surpreendente. “Foi meio surreal ter casado o momento da série com o da pandemia. Na série, há circulação de uma droga que tira a sensação de medo dos personagens. É muito louco, isso vivido no Brasil: parece que uma parcela da população, por falta de informação, má-fé ou falta de caráter, está sem medo (da Covid-19). Parece eco de um fenômeno político de quem tem privilégios”, demarca o ator.
Para a composição do personagem na série criada por Frederico Ruas e Leo Garcia, o policial militar homossexual Júlio, João Campos contou com o apoio do bailarino Alexandre Adas. “Ele é policial, e homossexual. Passamos horas em conversas sobre como se sentia, sobre códigos técnicos, postura e modos de operação na corporação”, conta o intérprete. Para além do padrão a exercer de suposto “superpolicial”, como destaca João, numa instituição machista, homofóbica e “antidiversidade”, o personagem Júlio Machado carrega trauma. “Ele tem sequelas emocionais graves, não consegue mais trabalhar, por pavor, e vive em pânico constante”, adianta o ator.
Numa ponte com a época em que “as pessoas que não temem pela própria vida, e nem pela vida dos outros”, como destaca João, A bênção chega num período em que “o estado dá aval à violência como uma das principais ferramentas de ação social”. “O absurdo da alta letalidade dentro da polícia e a extrema violência demarcada na série é como vemos a polícia operando hoje. A proposta de uma pessoa dopada (como impresso na série) é o comportamento visto em parte da polícia brasileira, especialmente quando age nas periferias, junto à população mais pobre e preta”, opina.
Peso racial
“Como homem branco, e no topo de muitos privilégios, mergulho muito na questão racial. Tenho estudado muito sobre isso. Me interessa como artista, questionar e democratizar espaços. Me vejo provocado, no processo criativo: quero destacar vozes não ouvidas”, conta João Campos, ao tratar de futuros projetos e, mais do que isso, de tratar do percurso existencial. Integrado há oito anos ao Grupo Nzinga de Capoeira Angola, com raízes democráticas, João adere ao esforço de lutar por liberdades e pela ampliação de ocupação e permissões a espaços, quando o tema é negritude.
O intuito atravessou o período inicial da quarentena, quando, ao lado da companheira e produtora audiovisual Ana Paula, recebeu Tune e Mito, um casal de Maputo (Moçambique) que ficou ilhado pela pandemia. Na ocasião, todos gravaram o curta Suicidário, produção caseira em fase de finalização.
Junto com a jornada, conciliando com a reinvenção de partir para trabalhos de dublagem, durante a primeira etapa da pandemia, João Campos aproveitou para escrever: surgiram os roteiros de Via-sacra, um projeto de curta-metragem e as bases para um longa, Divino. O primeiro cerca uma mulher negra, advogada, e que recebe telefonema, gerado por situação de emergência, em casa; já Divino transcorre durante a festa da Folia de Reis, e traz ação no interior de Goiás, cenário bem familiar ao ator. Ambos filmes preveem negros como protagonistas.
Protagonismo também toca João Campos, pela primeira vez, no longa-metragem Depois de ser cinza, personagem central. Depois de quase três anos em finalização, o longa assinado por Eduardo Wannmacher será mostrado no 28o Providence Latin American Film Festival (EUA). Bendito fruto, entre três protagonistas mulheres, João Campos conta que Raul, o personagem, é entendido por meio delas, no ponto de vista feminino. “O filme traz histórias em rede, ao longo de cinco anos. Fala de primeiro amor, de intimidade e de inter-relações. É um filme também sobre perda. Sobre cuidar do outro e o impacto que isso tem nas relações humanas”, avalia o ator. Filmado em Porto Alegre, o longa ainda teve bônus para João Campos: numa das cenas, o personagem, acadêmico antropólogo, interagiu com o palestrante Muniz Sodré, nome de excelência nos estudos de cultura negra.
“Você vê pessoas sem máscara, na rua, conversando, se abraçando: o presidente da República andando sem máscara, pegando na mão das pessoas. Tem gente influenciada pelo discurso do ‘é só uma gripezinha’ que entra na onda”
João Campos, ator
Cidade Nova
(2015). Curta-metragem cearense e que rendeu a João Campos o troféu Candango de melhor ator. No interior, com personagem denso, ele enfrenta situação forte: uma cidade, alagada para construção de açude, desafoga velhos conflitos em família.
Encerramento do amor
Premiado texto contemporâneo francês de Pascal Rambert, encenado, no teatro, junto à Companhia Setor de Áreas Isoladas. Sob direção de Diego Bressane, a montagem teve turnê prejudicada pela pandemia, e deve ser retomada em 2021. Monólogos selam o distanciamento entre os protagonistas de uma relação amorosa.
A lei do amor
“Vivi, na tevê, personagem muito querido, o Élio Bataglia, um jornalista. Foi meu primeiro trabalho na tevê, segurando um personagem em set prolongado, e trouxe para mim a exploração de uma linguagem, até então, desconhecida”, conclui João Campos.
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